Poesia: um olhar diferente sobre a banalidade do mal

Poesia: um olhar diferente sobre a banalidade do mal

Quando se acendem as luzes, o público sai em silêncio. Os comentários são dispensáveis. É esse o efeito que o filme coreano Poesia deixa nos expectadores. Um drama intenso, onde a trama do humano se tece em várias direções. Os movimentos são lentos, como o fluir das águas do rio que abre e fecha o filme.

Uma primeira trama desenha com traços leves o dia-a-dia da protagonista, uma senhora de idade, que tenta melhorar sua renda cuidando de um idoso vítima de um derrame. Alguns problemas de saúde, dores e esquecimentos, obrigam-na a se submeter a exames médicos. Nada que ela leve muito a sério e que a impeça de buscar novos sentidos para sua vida.

O desejo de fugir de uma rotina sem emoções leva a protagonista a se inscrever em um curso de poesia. As aulas começam assim a pontuar o seu dia-a-dia, trazendo o desafio de olhar para a realidade com os olhos do poeta, capazes de captar o que os outros não conseguem ver.

Uma segunda trama esboça o dia-a-dia de um jovem adolescente, neto da protagonista. Enquanto a avó tenta reencantar o mundo à procura da poesia do real, o neto tem um olhar vazio, sem vida, perdido nos programas de televisão, totalmente incapaz de “ver” a realidade do outro. Ensurdecido pela música que ele ouve no seu quarto no último volume, ele parece não ter a menor condição de reagir, totalmente centrado em si mesmo e nos seus desejos fúteis.

Uma terceira trama surge aos poucos, tomando conta da narração e trazendo à tona uma realidade inesperada e cruel. Jovens e adultos atravessados pela incapacidade de “sentir”, reagem com absoluto cinismo diante de cenários de perversão e de violência.

Na obra Eichmann e a banalidade do mal, Ana Arendt usa a expressão ” banalidade do mal” para caracterizar as ações de Eichmann, um dos principais responsáveis pelo Holocausto, Ao assistir ao processo em Jerusalém do ex-chefe nazista, Arendt conclui que Eichmann agia irrefletidamente, seguindo ordens, com nenhuma consideração dos seus efeitos sobre as suas vítimas.

Arendt conclui que Eichmann era incapaz de exercer o tipo de julgamento que teria lhe permitido perceber o sofrimento de suas vítimas como algo real, Ele era incapaz de pensar, de manter um diálogo interno consigo mesmo, que teria permitido alcançar a consciência da natureza da maldade de seus atos.

Mergulhada em um cenário não menos dramático a protagonista de Poesia, vive dilacerada diante da necessidade de “sentir” e olhar a dura realidade com a alma de um poeta e difíceis escolhas éticas. À mercê de uma profunda aridez interior, quase catatônica, as palavras não se articulam, as decisões não fluem e ela se vê arrastada por um contexto perverso e frio. Em seu caderninho destinado a anotar o seu primeiro poema, encontram-se apenas frases desconjuntadas, pois falta um fio condutor que possa juntá-las em busca de um sentido. Uma metáfora da fragmentação do humano que a realidade traz de forma cruel e insistente.

Aos poucos, contudo, as tramas se juntam e o tecido toma forma. A poesia finalmente brota da alma e se impõe sobre o olhar cínico do mundo que a rodeia. De forma dramática a frágil senhora se recusa a viver a banalização do mal e assume as dramáticas consequências que a consciência lhe impõe.{jcomments on}

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