O indivíduo como empresa

O indivíduo como empresa

O sistema neoliberal transforma o indivíduo numa empresa de si mesmo: ele deve administrar a sua existência: vida planejada, metas a cumprir ( até para o ócio ou lazer, temos metas, isto é devemos ser eficientes). O uso da palavra empresa, ainda que de modo equivocado juridicamente, é revelador da associação entre o indivíduo que age e aquele que alcança resultados positivos e duradouros, (cumprindo assim dimensões caras à gestão: eficiência, eficácia e efetividade). Mas não basta empreender e conquistar, é preciso ser arauto de seus próprios feitos. Convencer a si e sobretudo aos outros de que o custo de sua existência é menor que os benefícios que esta existência trará. Espera-se que nos tornemos especialistas em auto marketing: o homem vitrine (aquário), vivendo numa sociedade espetáculo: o espaço público e a privacidade igualmente banalizados.

Ocorre que a maioria das experiências humanas não se sujeita a análises “custo benefício”. Embora exista uma economia psíquica, esta tende para um equilíbrio interior e não para maximização de resultados positivos, sobretudo resultados avalizados externamente ao ser. O que tentamos dizer é que a humanidade se afirma também no alcance de consequências inesperadas ou mesmo indesejáveis, mas sobretudo em resultados íntimos, pessoais. A percepção moderna da subjetividade compreende que nem todos os resultados/efeitos são controláveis pela assunção da vontade humana consciente. O próprio direito reconhece isso. Evoluiu-se da responsabilidade jurídica baseada na reprovação “moral” da conduta do indivíduo (subjetiva) para a responsabilidade objetiva com ênfase na reparação dos danos e assunção de riscos como nexo de imputação de responsabilidade.

Interessante é que enquanto o direito supera a ideia exclusiva de culpa a gestão empresarial “ num questionável discurso de valorização do funcionário” transfere para o mesmo a responsabilidade, agora personalizada, por resultados não desejados, ainda que facilmente previsíveis, porque na maioria das vezes inalcançáveis.

Eis uma fórmula precisa para a frustração generalizada: metas irreais. Num mundo dividido entre “losers” e “winners”, o homem esgotado, cansado, entrega não apenas a sua força física para a empresa, mas também a sua alma. Evidentemente existe ai uma alocação de energia que será subtraída de algum lugar. Enquanto se afasta do Outro, desconstruindo vínculos de intimidade ou espaços políticos de reflexão e de decisão, (possibilidade real de identificação e, portanto, de auto identificação), eros sufocado transfere sua libido para as relações laborais. Não se discorda que o trabalho possa e deva ser um das dimensões de realização do indivíduo.

O crucial é que a transformação do indivíduo em “empresa” de si, numa suposta relação de igualdade com corporações ou entidades, é um grande engodo. Primeiramente porque viver não é ser eficiente. O acaso, o surpreendente são avessos a qualquer planejamento, que em síntese é a fúria do controle, com aparência de razoabilidade. O amor e a criação dependem do estar distraído ( descansado?) . O pior, nesta ideologia neoliberal é que ao internalizar a repressão o indivíduo que almeja ao sucesso, que busca ser o líder de sua vida, o grande administrador da sua existência, ao se dar conta de que as metas propostas não são realizáveis, internalizará a culpa. Afinal “quem não tem competência, não se estabelece!”.

Incutindo no paradigma de trabalhador, ou melhor colaborador, os valores, a missão da organização, numa relação quase pessoal (vínculo entre pessoa física e pessoa jurídica – logo ficcional), o funcionário desloca para a empresa sua força psíquica, afetiva. E como desejamos esta identificação! Como buscamos desesperadamente a sensação de pertencimento a algo maior. Certamente os que vivenciam verdadeiramente esta experiência são afortunados. No entanto, o problema é a apropriação retórica desta força que é genuinamente humana e que deveria ser amplificada em outras instâncias: relações amorosas, estéticas, de lazer.

Porque surpreendentemente, durante algum tempo, a economia interna de nossos investimentos fortalecerão o sofisma de que a aplicação da energia afetiva e criativa na empresa resultará em maiores ganhos do que o investimento em experiências pessoais, na construção de valores próprios. Afinal, ninguém é reconhecido por gerar filhos sãos, por manter uma casa em equilíbrio – físico e emocional, por caminhar de mãos dadas, por cultivar “velhos” amigos. Isto efetivamente não é considerado sucesso social. Embora, numa adoração pelo avesso, as tragédias domésticas e familiares engrossem noticiários.

O paradoxo está justamente no fato de que não se constrói uma história com a empresa. Superados os direitos trabalhistas, alcançados às duras penas, superada ou flexibilizada esta percepção certeira de relação entre desiguais, o que resta é quem co- labora (trabalha junto), mas sem igualdades de armas. O co – laborador não participa da tomada de decisão na empresa, ainda que concernente à sua própria vida. Assim, ainda que dedique seus melhores anos ao sucesso da instituição com a qual efetivamente mantém vínculo, a mesma não hesitará em descartá-lo quando lhe for conveniente.

Vale, então, indagar a natureza deste vínculo. Claramente é um vínculo jurídico e o rompimento, conforme o enquadramento legal, acarretará indenização pecuniária. Mas e quanto à dimensão afetiva, criativa tão evocada como fundamento motivacional? Qual a natureza do rompimento deste vínculo? Como esvaziar este compromisso? O que resta, quando descartado, para aquele que “um dia” fez parte da “família empresa”?

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