A relação com o corpo

Conheço muitas amigas que se dedicam à ginástica e aos tratamentos de beleza. Eu não me considero tão vaidosa, mas também cuido da minha saúde e corpo. Por que damos tanto valor às aparências? Joana, de Dois Córregos (SP)

Uma determinada tradição cristã cultivou durante séculos algo que não é necessariamente cristão: um certo menosprezo pelo corpo. Na esteira da tradição filosófica platônica, Santo Agostinho considera enganoso tudo aquilo que vem dos sentidos, relegando a percepção do corpo a algo efêmero. Diante da alma imortal, o corpo mortal não merece maiores atenções já que pode nos aprisionar com suas paixões e seus enganos.

 A associação que a nossa leitora faz do cuidar da beleza e do corpo com valorizar as aparências parece estar marcada por essa visão do corpo. No entanto, fazer ginástica e cuidar da beleza pode ser algo necessário para o nosso corpo e também para a nossa psique. A própria bíblia frisa que o homem foi criado à “imagem e semelhança” de Deus. Para a tradição judaica a alma e o corpo estão intimamente ligados, portanto, assim como o resto da natureza, o nosso corpo é um reflexo da presença do divino na criação.

Do ponto de vista psicológico, encontramos uma plena confirmação da percepção bíblica, pois, em um psiquismo equilibrado, o corpo é percebido como o natural prolongamento da nossa mente. Habitar o próprio corpo é um sinal de saúde psíquica.

O cuidado dedicado ao corpo pode ser uma expressão do acolhimento que somos chamados a dar a nós mesmos e ao nosso Self, àquela parte da psique que unifica e harmoniza a nossa personalidade e define nossas “formas” de estar no mundo, inclusive a maneira como interagimos com o corpo, como cuidamos dele e como expressamos através dele nossa beleza interior.

Feita essa premissa, acredito que seja importante frisar um aspecto que talvez tenha motivado a nossa leitora a formular a pergunta associando o cuidado do corpo com valorizar as aparências.

Do ponto de vista psicológico de fato cuidar do corpo pode não ser uma expressão espontânea da nossa auto-estima e do cuidado que dedicamos a nós mesmos. O cuidado do corpo tornou-se hoje um imperativo do meio em que vivemos. Uma exigência que, uma vez assimilada pelo nosso inconsciente, se torna uma instância superegoica opressiva, ou seja, uma imposição percebida como uma espécie de “lei” à qual devemos obedecer para “agradar”, atendendo assim às expectativas dos que nos rodeiam.

Para muitos cuidar do corpo tornou-se uma obrigação desse tipo. Ao invés de ser algo prazeroso e enriquecedor para a psique, tornou-se um peso, um ritual vazio, que oprime a mente. Tudo isso piora quando o nosso corpo é olhado por nós mesmos com desprezo, como algo falhado, imperfeito, a ser consertado, ou melhor ainda, “trocado”. Não seria esse o sentido de algumas intervenções cirúrgicas de caráter estético? Neste sentido cuidar do corpo pode ser apenas o equivalente de dar valor às aparências e, portanto, pode tornar-se uma experiência que não é construtiva do ponto de vista psicológico.

Afinal, como distinguir se estamos exagerando com os cuidados do corpo ou se estamos apenas fazendo algo necessário? A nossa relação com o corpo traz uma sensação de paz e de harmonia, desde que seja fruto de uma necessidade interna de auto-acolhimento e de cuidado, ou seja, uma forma de amar a nós mesmos, fugindo tanto da recusa do corpo como da tentação de sujeitar-se aos padrões estéticos impostos pelo ambiente externo no qual vivemos (amigos, mídia, padrões sociais, etc.)

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