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Comportamento

A mágica promessa de fugir do conflito

Em uma sociedade voltada para o bem-estar, a auto-realização e o gozo eterno, os medicamentos antidepressivos, os anabolizantes e os energéticos exercem um papel fundamental para aliviar o homem e a mulher contemporâneos do sofrimento de existir.

Viver sem conflitos, ser “inteiro” (ou seja, sem divisões internas), viver em busca de si-mesmo: eis alguns dos desafios lançados como meta pelos profetas do gozo sem fim para atingir o bem-estar e o sucesso na vida pessoal e profissional.
Na contramão dessas expectativas, Alain Ehrenberg, um estudiosos de fenômenos sociais, escreve no livro A fadiga de ser si-mesmo: “O bem-estar não é a cura, porque curar-se significa ser capaz de sofrer, de tolerar o sofrimento. Estar curado, desse ponto de vista, não é simplesmente ser feliz, é ser livre” (citado por M. R. Kehl no livro O Tempo e o cão, p. 220).

Viver sem conflitos para o ser humano é uma contradição em termos, pois a condição humana supõe como característica essencial o conflito. O humano envolve o paradoxo, suas contradições, suas incoerências e a sensação do inacabado.

Talvez, possamos ler o relato bíblico da queda inicial, como uma descrição da eterna tentação do ser humano de fugir de sua contradição intrínseca, de sua limitação essencial, na tentativa de ser como Deus. Vou arriscar uma exegese ainda mais ousada: o ser humano não pode comer o fruto proibido da árvore do conhecimento, porque ele é essencialmente ignorante quanto à possibilidade absoluta do Bem e do Mal. Ele precisa conviver “serenamente” (esta seria a condição paradisíaca), com a sua ambiguidade e o seu “não saber”. A perda da inocência consiste em querer fugir da turbulência das emoções, do conflito, para estabelecer uma estrutura onipotente de controle sobre o Bem e o Mal, de conhecimento arrogante e absoluto, de autodomínio ilusório.

Esta é exatamente a promessa dos falsos profetas do gozo: se aparecer o conflito, a dor de existir, tome uma pílula e tudo vai passar… Não importa se você vai viver como um zumbi. O admirável mundo novo preconizado por A. Huxley no seu livro descreve uma sociedade muito parecida com a nossa. Na imaginação desse autor, o futuro é dominado por um Estado Tecnocrático, que impõe o culto da saúde e do bem-estar físico. Qualquer experiência emocional é eliminada e proibida, em prol de uma higiene mental absoluta. Os seres humanos, nascidos de proveta, são pré-condicionados e têm comportamentos preestabelecidos para ocupar lugares predeterminados na ordem social: os alfas no topo da pirâmide, os épsilons na base.

Dentro dessa perspectiva alucinada, é sempre necessário “algo a mais”, para fugir do presente e do encontro com o real. Trata-se de um frenesi existencial – algo parecido com aquilo que os gregos chamavam de húbris –, que lança no turbilhão de uma excitação nunca satisfeita e nunca capaz de se satisfazer. A húbris ou hybris é um conceito que pode ser traduzido como “tudo que passa da medida; descomedimento” e que remete a uma sensação de onipotência, um misto de orgulho, arrogância, presunção e até insolência (originalmente contra os deuses), que com frequência termina sendo punida. Trata-se de um desprezo temerário pelo espaço pessoal alheio, unido à falta de controle sobre os próprios impulsos. É evidente que esse descomedimento remete aos núcleos psicóticos da personalidade que não conseguem processar o limite e a frustração que são impostos pelo encontro com a realidade nua e crua.

Podemos ver algumas expressões da húbris na compulsão para comprar, para se divertir de forma desenfreada, na necessidade de viver uma excitação prolongada e artificial (o uso da droga tem essa finalidade), que levam a perceber como vazios e sem sentido os encontros “normais” e as formas mais comuns de diversão, tidos como “caretas”.

Uma vez entrado no redemoinho da húbris, é difícil sair. O conto Descida no redemoinho (A Descent Into the Maelstrom) de E. A. Poe descreve com tintas dramáticas o terror de ser capturados pela fúria das águas do inconsciente que nos tragam inexoravelmente para as profundezas do abismo sem fim. Certamente nenhuma promessa de felicidade merece que embarquemos nessa aventura alucinante.

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