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Psicanálise

Rupturas na continuidade de Ser e medo de Ser (Winnicott)

(C) Andréia Graciano (2021)

1. SOBRE O DESENVOLVIMENTO DO SER NA TEORIA DO WINNICOTT – O tracejar do ser e estar no mundo

Foi Winnicott que introduziu o conceito de Ser na psicanálise, através dos seus estudos que revelaram que o que impulsiona e caracteriza a natureza humana é a necessidade de ser e continuar sendo.

No começo teórico existe o estado de não integração (F1), como um tracejado aberto numa ausência de globalidade tanto no espaço quanto no tempo. Neste estágio não há consciência.

A partir do estado de não-integração se produz a integração breves momentos ou períodos, e só gradualmente o estado geral de integração se transforma em fato (F2), num tracejado fechado e contínuo do ser.

O conceito do Ser, na obra de Winnicott, se estabelece como material diagnóstico básico da condição emocional de uma pessoa, tendo em vista sua premissa ontológica que, antes de ser mulher ou homem, é preciso ser uma pessoa inteira, enraizada em si, espontânea, criativa, capaz de brincar, ou seja, constituída de um self (F2)

“Após ser — fazer e deixar-se fazer. Mas ser, antes de tudo” (WINNICOTT, 1975, p. 138).

Diferentemente de todas as espécies, a natureza humana possui um ser que não provém da biologia, não é espontâneo — é uma aquisição.

A constituição do ser, para Winnicott, para ser considerada saudável está na possibilidade de continuar a ser, em um devir de um processo constante e gradual que depende absolutamente do ambiente favorável para se constituir. A “quebra de continuidade” provocada, por exemplo, pela intrusão ou pelo abandono de um ambiente desfavorável provoca traumas nessa continuidade do ser, que compromete o “vir a ser” do indivíduo (WINNICOTT, 2011, p.40).

Argumentando a partir deste postulado do ser, da continuidade do ser e da interrupção dessa continuidade pelas reações à intrusão e o posterior retorno ao ser, é possível fazer uma afirmação adicional: a de que, a partir de um certo momento anterior ao nascimento, o bebê passa a se habituar às interrupções da continuidade e se toma capaz de admiti-las (F3), desde que elas não sejam intensas demais, nem excessivamente prolongadas (F4) (WINNICOTT, 1990, p. 149).

A partir do ambiente que o ser se desenvolve. A presença ativa e os cuidados suficientemente bons da mãe-ambiente permitem a integração, a personalização e a realização para formar o self da criança.

A integração é estimulada pelo cuidado ambiental. Em psicologia, é preciso dizer que o bebê se desmancha em pedaços a não ser que alguém o mantenha inteiro. Nestes estágios o cuidado físico é um cuidado psicológico.

À medida que o self se constrói e o indivíduo se toma capaz de incorporar e reter lembranças do cuidado ambiental, e, portanto, de cuidar de si mesmo, a integração se transforma num estado cada vez mais confiável.

Desta forma, a dependência diminui gradualmente. Enquanto a integração vai se tornando um estado contínuo do indivíduo, a palavra desintegração revela-se mais apropriada para descrever o negativo da integração do que o termo não-integração. Em estágios posteriores é possível que surjam exageros no cuidado consigo mesmo, organizado como uma defesa contra a desintegração que a falha ambiental ameaça provocar.

É um verdadeiro desastre a quebra de continuidade do cuidado familiar. Nos primeiros estágios desse processo, o bebê é extremamente dependente do cuidado materno, da presença contínua e da própria sobrevivência da mãe (analista). Esta deve realizar em si uma adaptação ativa suficientemente boa às necessidades da criança, sem a qual esta (a criança) não pode evitar desenvolver defesas que distorcem o processo.

DEFESAS:

  • A agressividade como fator de integração

Fatores internos podem contribuir para promover a integração; como exemplo temos a exigência instintiva ou a expressão agressiva, cada uma delas sendo precedida por uma convergência aglutinadora do self como um todo. Nestes momentos, a consciência se torna possível, pois ali existe um self para tomar consciência.

  • O falso self

Ocorre quando o bebê precisa, por exemplo, assumir ele mesmo a função ambiental se esta não se impõe do exterior, de modo que constitui-se nele um self verdadeiro escondido e, voltado para fora, um falso self engajado na dupla tarefa de esconder o self verdadeiro e ceder às exigências que o mundo lhe impõe a todo momento (WINNICOTT, 2011, p. 214).

  • Mente (inteligência)

A mente tem a função de converter um ambiente suficientemente bom em perfeito (adaptado) permitindo o mínimo de intrusão do ambiente e o máximo de desenvolvimento natural e contínuo do eu; além de catalogar as intrusões para elaborar numa fase posterior do desenvolvimento (mais amadurecido).

Uma das raízes da mente então é o funcionamento do psicossoma sempre às voltas com as ameaças a continuidade do ser. A mente surge no bebê a partir do momento que pode tolerar as frustrações egóicas e instintivas para liberar a mãe de um ambiente perfeito.

A falha materna, principalmente de comportamento errático levam a uma hiperatividade do funcionamento mental. Aqui no funcionamento mental excessivo em relação a uma maternagem errática surge uma oposição entre mente e psicossoma, pois em reação ao ambiente anormal, o pensamento do indivíduo assume o poder e passa a cuidar do psicossoma, enquanto que na saúde é o ambiente que deve fazer esta função. Na saúde, a mente não usurpa as funções do ambiente. A mente quando usada de forma adequada permite que ocorra a compreensão das falhas do ambiente, porém o indivíduo só pode cuidar do seu eu em estágios posteriores do seu desenvolvimento emocional. Não precocemente…

Em último grau, um funcionamento mental organizado defensivamente traz como resultado um funcionamento da mente por si mesmo, substituindo a mãe e tornando-a desnecessária. É um estado de coisas extremamente desconfortável, principalmente, porque a psique é seduzida a se transformar em mente, rompendo o relacionamento que existia entre a psique e o soma (corpo). Disto resulta uma psique-mente que é patológico.

  • Defesas maníacas

Winnicott fala sobre a natureza da defesa maníaca no livro Da Pediatria à Psicanálise num texto de 1935 e diz que suas características são a manipulação onipotente, controle e desvalorização desdenhosa.

As defesas maníacas se organizam em relação às ansiedades vinculadas à depressão, que é “o estado de espírito resultante da coexistência de amor, voracidade e ódio nos relacionamentos entre os objetos internos.” (Da pediatria à psicanálise, p. 203).

A defesa maníaca se manifesta de diferentes formas interrelacionadas:

→ negação da realidade interna;

→ fuga da realidade interna para a realidade externa;

→ negação das sensações de depressão – a saber, as sensações de peso e tristeza trocadas por sensações especificamente opostas como leveza e euforia.

O uso de opostos para se tranquilizar faz parte das fantasias onipotentes e no controle onipotente da realidade externa tais como: se vazio, preenche-se; se morto, aparenta-se vivo, crescente; se um mundo interno inerte, põe-se em movimento; se cinzento, colorido; se escuro, luminoso; se em discórdia, busca aparecer em harmonia e uma série de opostos seguem.

2. O MEDO DE SER

O medo de ser é uma formulação baseada nos conceitos do medo e do ser em Winnicott reunidas na expressão medo de ser. Ocorrências traumáticas denominadas por  Winnicott como “rupturas na continuidade do ser” comprometem o sentimento de confiança na experiência de ser. Estas vivências traumáticas sofridas tanto na constituição psíquica quanto na constituição da cultura promovem uma inibição (medo esmagador da potencialidade do ser) e, consequentemente, comprometem o desenvolvimento emocional do indivíduo.

3. A PSIQUE É A ELABORAÇÃO IMAGINATIVA DAS FUNÇOES SOMÁTICAS, DOS ELEMENTOS DO MUNDO EXTERNO E SENTIMENTOS.

O verdadeiro eu e o continuar a ser têm como base, na saúde, o desenvolvimento do psicossoma.” (WINNICOTT, 2000, p. 345)

O cerne do eu imaginário se forma na experiência do indivíduo quando sente os seus limites entre um interior e um exterior.

A teoria da saúde de Winnicott diz que a natureza humana, desde o nascimento, o ser humano necessita das inter-relações para sobreviver. Pressupondo que não ocorram questões incapacitantes de ordem biológica, existe um percurso esperado no desenvolvimento físico e emocional para a formação do psicossoma do bebê.

Winnicott entende que a psique e o soma (corpo) são indissociáveis porque estão em um processo mútuo de inter-relacionamento, no qual a psique é a elaboração imaginativa das funções somáticas* (fantasias), no entanto, é o ambiente (representado na mãe suficientemente boa) que determinará o bom destino ou o fracasso deste vir a ser.

* A elaboração imaginativa equivaleria à constatação de estar vivo, a qual, embora corresponda a uma experiência pré-verbal não simbolizada, é marcada por uma singularidade determinada pelos ritmos do corpo daquele corpo/ser.

A elaboração imaginativa, através da compreensão dessa noção no contexto de sua obra, corresponde a uma experiência pré-verbal, não simbolizada, que permitirá uma rudimentar atribuição de sentido à experiência de vitalidade que inaugura e possibilita a constituição do verdadeiro self.

“Em um certo momento, no início do dia, o bebê tem uma experiência instintiva. Para simplificar as coisas, eu o imagino mamando, pois esta é realmente a base de toda a questão. Deflagra-se um ataque canibalístico impiedoso, que em parte pertence à elaboração imaginativa que o bebê faz da função física. Será a partir da sobrevivência repetida da mãe aos seus ataques nos momentos excitados que o infans poderá reconhecer a diferença entre os fatos e as fantasias, ou entre a realidade externa e realidade interna (Winnicott, 1955[1954]/2000g, p. 362).

A elaboração imaginativa associada à fantasia segue ao longo de sua obra, constituindo um recurso fundamental da natureza humana para dar sentido ao que é vivido e realizar a integração necessária para a existência psicossomática.

Também está relacionada ao sonho e a toda atividade criativa da qual fazem parte o brincar, o criar, o imaginar e o devanear, atividades que dependem da capacidade de transitar entre o presente, o passado e o futuro, fornecendo subsídio para a memória e para a antecipação das experiências. A partir da elaboração imaginativa, terá início a construção de um mundo interno, acompanhada pelo sentimento de responsabilidade a respeito do que ocorre dentro desse mundo, assim como a possibilidade de discernir entre a fantasia localizada dentro e fora de si mesmo, permitindo o constante intercâmbio e enriquecimento entre ambas. Trata-se, portanto, de um conceito fundamental para a compreensão da formação do psiquismo e da constituição do indivíduo, entendidas pelo autor como eminentemente psicossomáticas.

“O brinquedo é uma elaboração imaginativa em torno de funções corporais, relacionamento com objetos e ansiedade.

Gradativamente, à medida que a criança se torna mais complexa como personalidade, com uma realidade pessoal ou interior, o brinquedo torna-se uma expressão, em termos de materiais externos, de relacionamentos e ansiedades internas. Isto conduz à idéia do brinquedo como expressão de identificação com pessoas, animais e objetos do meio ambiente inanimado.” (Explorações Psicanalíticas p. 50)

Através do brinquedo, a criança lida criativamente com a realidade externa. Ao final, isto produz um viver criativo e conduz à capacidade de sentir-se real e sentir que a vida pode ser usada e enriquecida. Sem o brinquedo, a criança é incapaz de ver criativamente o mundo, e, em consequência disso, é arrojada de volta à submissão e a um senso de futilidade, ou à exploração de satisfações instintuais diretas. E especialmente na administração da agressão e da destrutividade que o brinquedo possui uma função vital, quando a criança tem a capacidade de fruir a manipulação de símbolos. No brinquedo, um objeto pode ser:

— destruído e restaurado;

— ferido e reparado;

— sujo e limpo;

— morto e trazido de volta à vida,

com a conquista adicional da ambivalência, em lugar da cisão do objeto (e do self) em bom e mau.

4. A ELABORAÇÃO IMAGINATIVA NO PROCESSO PSICANALÍTICO

Este é o brincar (play) em análise do qual Winnicott fala!

É muito interessante esta ideia da elaboração imaginativa proporcionando acesso ao mundo interno da criança e evocando no analista sua própria capacidade de elaborar imaginativamente. Tal movimento favorece o brincar na análise proposto pelo autor, partindo do acesso às fantasias decorrentes das experiências que envolvem a relação do corpo com o espaço (que constituem a própria elaboração imaginativa), as quais são marcadas pela singularidade e pela subjetividade, tanto do paciente como do analista. Para compreender esse movimento, é importante destacar a importância conferida por Winnicott à integridade psicossomática do analista, que, ao interpretar, deve ser capaz de mobilizar sua capacidade intelectual sem dissociá-la de sua psicossomática.

Como afirma Bonaminio (2010), o analista descrito por Winnicott é visto, “antes de mais nada, respirando”. Não se trata, portanto, da capacidade do analista de fazer interpretações argutas, mas da possibilidade de direcionar sua atenção ao self do paciente, o que significa acompanhar os movimentos que oscilam entre a integração e o risco de desintegração, assim como aqueles que transitam pela possibilidade da psique habitar o soma. A partir dessa perspectiva, considera-se a elaboração imaginativa como um recurso do analista para estabelecer uma comunicação não verbal com o paciente de modo a auxiliá-lo no acesso do seu self verdadeiro, que constitui um núcleo central, silencioso, incomunicável “que não deve nunca se comunicar com, ou ser influenciado pela realidade externa” (Winnicott, 1963/1983c, p. 170).

Nesse sentido, ao pensar a respeito da interpretação e da comunicação no setting analítico (Bonaminio, 2010), afirma que a elaboração imaginativa consiste em uma atividade do self do analista que o permite investir no paciente.

Considerando que Winnicott estabelece uma diferenciação entre pacientes que viveram experiências satisfatórias no início do desenvolvimento emocional, as quais poderão ser reeditadas transferencialmente, e outros que encontrarão na análise a oportunidade de ter experiências satisfatórias pela primeira vez, a atividade do self do analista antecederia a contratransferência. Esta atividade ocorre através da identificação primária, em um modo espelhado através do qual o self do paciente se apresenta ao analista a partir do contato estabelecido entre os corpos durante o encontro analítico, consistindo em uma experiência sensorial (por isso, a importância do encontro presencial).

Roussillon (2012) contribui para a compreensão desta hipótese, afirmando que “as experiências subjetivas arcaicas estão intimamente articuladas aos estados do corpo e às sensações vindas dele” (p. 21), o que nos auxilia na compreensão da importância da escuta ampliada do analista no atendimento de pacientes cujo sofrimento, na falta de palavras capazes de expressá-lo, encontra alguma forma de inscrição no corpo. A atenção do analista é dirigida ao campo da sensorialidade, tanto no que se refere ao corpo do paciente, seus movimentos, variações de tom de voz, mudanças de tônus durante a sessão, como à percepção de seu próprio corpo sendo afetado pelo contato estabelecido entre a dupla.

Essa perspectiva torna-se relevante para a clínica psicanalítica contemporânea, constantemente desafiada pela incapacidade de tantos pacientes, sejam eles somatizadores, adictos, depressivos ou borderlines, de encontrarem palavras para comunicar seu sofrimento, aprisionados no deserto da precariedade de representações que impede a livre associação e as equações simbólicas. Em tais condições, o caminho que leva da sensação ao pensamento ainda está por ser construído com o auxílio do analista, construção facilitada pela possibilidade de ele incluir a dimensão sensorial na sua escuta, ampliando-a para além das palavras.

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