Meia noite em Paris

Meia noite em Paris

O filme de Woody Allen, Meia noite em Paris, além de questionar o olhar melancólico sobre o passado, contrapondo-a á possibilidade de apostar criativamente no presente, traz à tona outra importante questão evidenciada pelo conflito entre o protagonista e a noiva. Os diálogos, habilmente conduzidos, ajudam o espectador a acompanhar os desencontros que aos poucos vão minando a relação do casal. Uma parte do conflito é de caráter estético (eles gostam de coisas radicalmente diferentes), outra de caráter ético (seus valores são diferentes).

Enquanto a noiva, ligada em compras de objetos caros e sofisticados, se encanta pela superficialidade e o exibicionismo do antigo amigo “sabe tudo”, o noivo, mais despojado, é motivado por uma busca interior que o leva a descobrir os segredos da Paris dos grandes artistas. A noiva vem de uma típica família americana conservadora, que prima pelo seu olhar arrogante e preconceituoso, enquanto o noivo, próximo dos ideais democráticos, ama se misturar ao povo nas ruas da cidade, buscando descobrir os encantos de sua cultura.

Este exemplo nos permite entender o quanto seja importante a questão dos valores para o psiquismo. Quando se instaura um conflito desse tipo, o vínculo (amoroso, profissional, social ou de amizade) é ameaçado e só pode se manter quando um dos envolvidos paga o preço da submissão, desistindo de si mesmo

A submissão é vivida pela psique como uma forma de violência que atinge o Eu profundo (Self), em torno do qual se organiza a personalidade do sujeito, o seu Self verdadeiro. Para se defender dos ataques contra essa estrutura, o psiquismo costuma desenvolver uma organização chamada de falso Self, uma estrutura adaptativa que visa proteger o Self verdadeiro, ajudando-o a fugir dos ataques violentos praticados pelo ambiente contra ele, encenando o teatro adaptativo. Não é esse o caminho que segue o protagonista do filme, que prefere sacrificar um futuro brilhante e glamoroso, para seguir seus valores.

A pergunta que surge é: os valores podem mudar? Do ponto de vista psicológico e sociológico, não é difícil perceber que os valores podem ser percebidos e priorizados de forma mutável, independentemente do ponto de vista ético e religioso, que pode vê-los como imutáveis.

Uma vez porém que determinados valores são assimilados pela psique nas relações com o ambiente através de um processo projetivo e afetivo, eles passam a compor a estrutura de personalidade do indivíduo e, portanto, são incorporados ao Eu profundo (Self), passando a constituir uma estrutura importante em torno da qual o psiquismo se organiza. Neste sentido, os valores podem ser assimilados com maior ou menor rigidez, mas eles constituem um ponto de referência importante para a psique e são defendidos por ela. Violá-los representa uma violência que pode causar uma desestruturação mais ou menos profunda do psiquismo.

Do ponto de vista psicológico, os valores estão também relacionados à estrutura que em psicanálise costuma ser identificada como Supereu. Qual é a diferença entre os valores integrados como aspectos do Self e os valores defendidos pelo Supereu?

No primeiro caso, estamos falando de objetos integrados pelo psiquismo, como uma espécie de “objetos cintilantes”, que são investidos pela energia vital da libido. No segundo caso, o Supereu age como um censor interno que freia a libido, impedindo que se dirija para a realização de desejos percebidos inconscientemente como uma ameaça diante de valores estabelecidos pela cultura e pela tradição dominante, introjetada pelo psiquismo como uma lei a ser respeitada. O Supereu é portanto o guardião dessa lei interna.{jcomments on}

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