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As neves do Kilimanjaro

Ao reafirmar sua fé no ser humano, o filme As neve do Kilimanjaro surpreende pelo seu olhar despojado e ao mesmo tempo poético. Com sensibilidade e profundidade a produção francesa vai tecendo considerações que envolvem cenários sociais de extrema atualidade: a violência, a exclusão, o desemprego, ao lado de temas mais intimistas, como o perdão e a solidariedade.

Tendo como pano de fundo apenas esboçado a cidade portuária de Marselha na Riviera francesa, o olhar da câmera não se perde em busca de paisagens idílicas, mas se volta decidida para o sindicato local, onde um dos líderes preside o sorteio para escolher os operários que serão demitidos.

Ao contrário dos sindicalistas que fizeram do sindicado um lugar para obter privilégios, poder e ganhos pessoais, o protagonista, da velha guarda esquerdista, acredita na justiça e coloca seu nome entre os possíveis candidatos à demissão coletiva. Sorteado, ele é demitido e tem de conviver com uma aposentadoria antecipada, embora amparada pelo seguro social e pelo salário da esposa, que trabalha como diarista.

Tudo isso parece anunciar apenas uma previsível crise pessoal, de quem aos cinquenta anos, sem chances de um novo emprego (estamos na Europa da crise), é obrigado a se adaptar à vida de desempregado. Um cenário desconfortável, porém amenizado pela alegria dos netos, o afeto dos amigos e o carinho da família.

As neves do Kilimanjaro se apresentam na festa dos 30 anos de casamento como um sonho de consumo, uma viagem exótica (e burguesa) oferecida pelos filhos, que além da passagem, reúnem também uma quantia em dinheiro para torna-la possível aos pais.

O sonho de consumo contudo é rapidamente desfeito por um brutal assalto. Os protagonistas, além de perder todo o dinheiro, as passagens e os seus cartões bancários, são brutalmente espancados pelos marginais.

A cena de violência desperta no espectador um sentimento de ódio pelos marginais e pela injustiça que atinge esse homem justo e, além do mais, certamente não rico. Tudo fica mais revoltante quando, aos poucos surgem indícios de quem poderiam ser os autores do crime.

Quando o ladrão ganha o rosto de um ex-colega, deixando de ser simplesmente um marginal mascarado, tudo fica mais difícil. É assim quando o outro é inscrito no âmbito do humano. O seu ato revoltante se revela como um reflexo de uma violência maior, que constela novas vítimas inocentes.

Na tentativa de compreender o acontecido, o protagonista supera o seu ódio e tenta entender o ódio do qual foi vítima, aceitando rever seus conceitos de justiça e de solidariedade, questionando a coerência de suas convicções. Tentando dialogar com o assaltante, compreende que tudo pode ser visto a partir de outro vértice, de outra maneira de conceber a justiça.

Também em busca de respostas e pelo caminho do coração, a esposa resolve tomar conta dos dois meninos que ficaram desamparados sem a ajuda do irmão mais velho.

É assim que todos se reencontram no caminho do perdão e da solidariedade, em uma viagem certamente mais exótica que aquela já descartada até as neves do Kilimanjaro, onde o frio de uma sociedade violenta é amenizado pelo calor de valores que deixam de ser apenas propósitos racionais, para se tornar expressões autênticas do humano.

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