A Psicanálise cura? Apresentacao

Apresentacao Por Talles A.M. Ab´Sáber

Nos últimos 20 anos o campo psicanalítico brasileiro passou por uma grande modificação, tanto em sua dinâmica teórica interna, quanto em sua posição e presença em relação ao todo da vida cultural local. Podemos dizer que se completou o projeto de uma geração de analistas de renovação e vitalização da linguagem e dos parâmetros teóricos interiores à disciplina, que levou a uma precisa e rigorosa avaliação do legado freudiano, bem como, no mesmo movimento, se ganhou uma mais aberta e livre percepção da grandeza do movimento histórico da disciplina através de seu primeiro século de vida, e, como grande ganho adicional, ainda foram reposicionadas as grandes questões epistemológicas que, vistas do presente, podem ser feitas à psicanálise. Analistas como Renato Mezan, Jurandir Freire Costa, Fábio Herrmann, Maria Rita Kehl, Joel Birman, Chaim Samuel Katz, Miriam Chnaiderman entre muitos outros, tiveram sua contribuição rigorosa e ampla de reposicionamento e recuperação do valor do legado freudiano, que através deles passou a ter um impacto qualificado na esfera pública, articulada, no movimento geral da disciplina, à  emergência significativa de um pensamento verdadeiramente original de psicanálise feito entre nós, seja de caráter epistemológico clínico, como é o caso do mestre Isaias Melsohn, ou de Gilberto Safra, seja no questionamento histórico das modalidades de subjetivação, no trabalho de Luiz Cláudio Figueiredo ou Suely Rolnik, seja o lançamento de uma mais intensa e rigorosa discussão epistemológica do lugar da psicanálise e sua história na história do pensamento ocidental, levada a cabo por filósofos como Bento Prado Jr., Luiz Roberto Monzani, Osmyr Faria Gabbi Jr. ou Zeljko Loparic. A este grupo de intensa produção e de grande rigor, responsável pela modificação histórica do mapa da psicanálise por estas paragens, soma-se no presente uma nova geração de analistas, da qual eu mesmo faço parte, que não parece disposta a recuar das possibilidades históricas e conceituais abertas por esta grande pesquisa anterior, e que começa a dar seus primeiros frutos teóricos mantendo o grau atingido por seus formadores, e que também parece colocar, ao seu modo,  parâmetros para um novo enquadramento da disciplina. Deste novo grupo, que em nada está em ruptura com seus mestres que chegaram primeiro, eu poderia nomear aqui, para motivo de consulta de algum leitor interessado, alguns pesquisadores de resultados significativos, do meu ponto de vista bastante paulistano, como Mario Eduardo Costa Pereira, Noemi Moritz Kon, Myriam Uchitel, Flávio Carvalho Ferraz, Decio Gurfinkel, Eliana Borges Pereira Leite, Mara Selaibe, Mara Caffé, Luis Hanns, Nayra Cesaro Penha Ganhito e Daniel Delouya. Temos também o importante trabalho de formação em articulação mais ampla da psicanálise com outros campos da cultura, proposto por David Calderoni, ou ainda a pesquisa muito forte dos filósofos mais jovens, como o radical trabalho entre a psicanálise a literatura e a filosofia de Juliano Pessanha, ou a leitura precisa do legado de Lacan de Wladimir Safatle. Evidentemente tal lista é marcada por um ponto de vista limitado, que é o meu, e certamente ela é injusta com pesquisadores que merecem nossa atenção e que não aparecem por aqui, devido à minha própria ignorância. De todo modo, como podemos ver o panorama atual, e local, é amplo, articulado fortemente à vida universitária – o que faz uma distinção particular da vida do movimento psicanalítico brasileiro em relação a outros países – e faz com que, quem tente dar um balanço na vida da psicanálise brasileira atual, seus resultados e seu grau de consciência teórica e clínica, tenha pela frente uma excitante e já relativamente grande tarefa. Sendo assim, é curioso que ao longo deste forte movimento da psicanálise contemporânea entre nós tenham sido produzidos poucos trabalhos de caráter de transmissão didática, em um nível superior de acepção do termo. Creio que, com a exceção do pequeno e excepcional livro sobre Freud de Renato Mezan, Freud, A Conquista do Proibido, felizmente ainda presente entre nós, e dos pequenos volumes sobre O que é a Psicanálise?, de Renato Mezan e Fábio Herrmann, realizados no âmbito do projeto didático da Editora Brasiliense ainda nos anos 80, mais nada foi produzido para a transmissão mais ampla da vida da psicanálise contemporânea em um registro didático superior. Alunos de psicologia, de filosofia, de ciências sociais ou literatura, ou mesmo do colégio, não podem contar assim com alguma espécie de abrégé da psicanálise contemporânea desenvolvida entre nós, com algum manual introdutório que, mantendo o rigor e a complexidade do campo hoje, possa servir de porta de entrada e primeiro elaborador, da forma mais completa possível, das conquistas atuais da disciplina psicanalítica. A recente, e excelente, coleção dirigida por Flávio Carvalho Ferraz, Clínica Psicanalítica, certamente responde a este objetivo, com suas amplas monografias tópicas sobre a vida psicopatológica contemporânea e seus autores especialistas, servindo tanto a analistas experimentados quanto a estudantes de nível superior, mas ainda não temos nenhum livro de referência universitária para um princípio de estudo geral e início de formação na longa e complexa trilha da psicanálise. Não é impossível que A Psicanálise Cura? de Roberto Girola venha a ocupar este lugar. Seu desejo de circulação ampla e didática não o impediu de estar em contato com a massa viva da produção psicanalítica contemporânea, que tenta ser expressa sem perdas significativas neste livro. Grande parte do campo metapsicológico freudiano é repassado aqui com precisão, servindo à atualização das consciências universitárias de forma muito útil, bem como o interessante problema da cura psicanalítica é estudado em profundidade, para quem dele queira aproximar-se com espírito isento. O caráter abertamente didático do livro se justifica deste modo como o preenchimento de uma lacuna que o campo rico a que me referi pode superar. Deste modo, o livro parece ser mesmo um dos gestos necessários deste amplo movimento, de posicionamento da matéria trabalhada pelos pesquisadores no registro teórico mais originário da ciência de modo que ela possa começar a alcançar um público mais amplo, solidificando, gradualmente, uma consciência pública mais verdadeira das coisas. Temos entre nós, excelentes livros desta mesma natureza dedicados a outros campos, como a filosofia a economia ou a sociologia, mas a psicanálise, por um motivo ideológico ou teórico que deve ser identificado e avaliado na sua validade e produtividade, em geral tem se recusado a produzir-se sobre esta forma. Se é verdade que o estrangeirismo humano do inconsciente, e eficácia mesma da vida da transferência, baseada em intimidade e diferença, implicam em um certo afastamento da disciplina do andamento mais evidente da ordem ideológica da própria consciência do mundo, a psicanálise também não deve se furtar ao oferecimento de si mesma a quem dela queira se aproximar e quem venha desejar conhecer a própria radicalidade da vida inconsciente. A transmissão didática assim tem função ética significativa no posicionamento da disciplina no mundo, o que, analistas de enorme importância e contribuição verdadeira para a disciplina, a começar pelo próprio Freud, ou ainda, podemos lembrar, Winnicott ou Dolto, não se recusaram a realizar, em seus próprios tempos e suas próprias culturas. Desta forma o trabalho rigoroso e extenso de Roberto Girola, neste registro da transmissão, é muito bem vindo. Nele estudantes e pessoas interessadas, não profissionais em geral, poderão encontrar, com objetividade, poder de síntese e amplas referências, a ordem de consciência interna, principalmente em relação à obra freudiana, da psicanálise atual. E analistas e pesquisadores já formados poderão reconhecer uma salutar visão ampliada da história do pensamento psicanalítico – incluindo a presença de autores fundamentais para a vida atual da disciplina, como Winnicott e Bion – organizada ao redor da questão paradoxal da cura em psicanálise, visão histórica livre que, por vezes, costuma faltar às facções do movimento psicanalítico organizadas politicamente ao redor de um único objeto teórico de referência – seja ele Freud, Melanie Klein, Lacan, Winnicott ou qualquer outro criador de psicanálise de interesse -. Fica aqui o convite à leitura deste livro útil e bem vindo. Tales A.M. Ab´Sáber Janeiro de 2004
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