A angustia (Freud e Filosofia)

A angustia (Freud e Filosofia)
© Roberto Girola – Junho 2000

Índice:

Introdução

O conceito freudiano de angústia: primeira formulação

O conceito freudiano de angústia: segunda formulação

Angústia e desespero (Kierkegaard)

Angústia e existência inautêntica (Heidegger)

Angústia e liberdade radical (Sartre)

Os paralelos entre Psicanálise e a Filosofia de cunho existencialista

Conclusão

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Introdução

“O homem (…) está irremediavelmente perdido, caiu do lugar que lhe é próprio sem conseguir encontrá-lo novamente, e o busca por toda parte com inquietação e sem êxito, mergulhado em trevas impenetráveis”.[1] Assim Blaise Pascal descreve a situação trágica do ser humano. Condenado a viver uma continua tensão entre razão e paixões, ele percebe no seu íntimo que não pode “estar em paz com a primeira, sem estar em guerra com as outras, permanentemente dividido, em conflito consigo mesmo”.[2] Podemos fazer remontar a angústia a esse conflito existencial entre razão e paixões, ou ela têm raízes mais profundas? A situação de angústia descrita por Pascal no século XVII teria a mesma significação para o homem contemporâneo, ou hoje teria adquirido novas colorações? Qual é o mal-estar psíquico do homem de hoje?

Para Freud a angústia é um mecanismo de defesa que se organiza a partir do conflito que o ego enfrenta ao tentar lidar com três instâncias: os desejos do id, as imposições do superego e as exigências da realidade. Podemos continuar falando da angústia no horizonte da neurose, nos desdobramentos da histeria, da obsessão, da melancolia e da fobia no sentido freudiano, ou devemos situar a leitura de Freud no contexto de novas referências? Para responder a essas perguntas, gostaria de traçar um paralelo entre a visão psicanalítica e algumas considerações extraídas da filosofia, recorrendo a três autores – Kierkegaard, Heidegger e Sartre –,[3] que fizeram da angústia um dos temas centrais de sua reflexão filosófica. Acredito também que possam ajudar, neste sentido, algumas considerações sobre a maneira como é considerada a angústia no universo cultural cristão, a partir de uma análise do conceito na Bíblia, pois trata-se de uma tradição que influenciou profundamente o pensamento ocidental. Desta forma, acredito, será possível refletir sobre a angústia numa perspectiva hermenêutica mais ampla e perceber melhor a importância e a atualidade da contribuição freudiana. Começarei portanto sintetizando a evolução do pensamento de Freud sobre o tema, para depois buscar os paralelos com as reflexões filosóficas de cunho existencialista e com o universo da tradição cristã, em busca de perspectivas que nos ajudem a sondar, em chave psicanalítica, as formas como hoje a angústia se manifesta.

O conceito freudiano de angústia: primeira formulação

Como sabemos, a obra de Freud é a expressão de um pensamento in fieri, onde os conceitos vão se organizando aos poucos, sendo continuamente questionados, negados e sucessivamente retomados, numa nova perspectiva. O conceito de angústia, na obra freudiana, segue esse itinerário. Num primeiro momento, encontramos uma série de textos em que Freud tenta definir a angústia como uma transformação da tensão sexual acumulada, que não consegue sua descarga por via psíquica. Trata-se de um momento inicial, em que o conceito de angústia é marcado por uma “descrição fenomenológica” e não por uma “exposição metapsicológica”.[4] Como veremos a seguir, neste momento Freud ainda está ligado a uma visão neurológica, preocupado em explicar como os fenômenos se dão do ponto de vista do funcionamento econômico do psiquismo.

Vamos começar nossa análise com um texto de 1894, o Rascunho “E”.[5] Neste texto, a neurose de angústia é relacionada à sexualidade e, em particular, ao coitus interruptus. Freud afirma que a origem da angústia não é psíquica e sim física. A seguir, cita alguns exemplos por ele indagados onde a angústia se faz presente ligada à vida sexual: a angústia das pessoas virgens, das pessoas voluntariamente abstinentes, das pessoas obrigatoriamente abstinentes, das mulheres adeptas à prática do coitus interruptus, dos homens adeptos à mesma prática, dos homens que forçam o desejo, dos que sentem repulsa ou sofrem de neurastenia. Todos estes casos têm em comum a acumulação física de excitação sexual, como conseqüência de ter sido evitada ou impedida a descarga (o coito). A angústia é portanto uma “transformação” que surge a partir da tensão sexual acumulada. Freud relaciona a angústia à melancolia (depressão), que faz com que a pessoa não sinta necessidade da relação sexual. Para entender como a angústia ocorre, Freud examina as duas possíveis fontes da excitação, a exógena e a endógena. No primeiro caso a excitação provém de fora e atinge diretamente a psique, que procura reduzir a quantidade de excitação, manejando-a através de uma reação adequada, “que reduza em igual quantidade a excitação psíquica”. No caso da endógena, a fonte de excitação é interna (fome, sede, excitação sexual). Ela exige “reações específicas – reações que evitem novo surgimento de excitação nos órgãos terminais em questão”.[6] A tensão endógena somente é percebida quando atinge determinado limiar, acima do qual passa a ter significação psíquica, e “entra em contato com determinados grupos de idéias”.[7] O objetivo é a busca de uma descarga. “A tensão sexual física acima de certo nível desperta a libido psíquica, que então induz ao coito”.[8] Quando a reação específica deixa de se realizar, a tensão aumenta, tornando-se uma perturbação. A neurose de angústia é uma transformação desta perturbação. “A tensão física, não sendo psiquicamente ligada é transformada em angústia”,[9] fazendo com que haja um alívio da tensão sexual. Conclui Freud:

Nos casos em que há um considerável desenvolvimento da tensão sexual física, mas esta não pode ser convertida em afeto pela transformação psíquica — por causa do desenvolvimento insuficiente da sexualidade psíquica, ou por causa da tentativa de suprimi-la (defesa), ou por causa do declínio da mesma, ou por causa do alheamento habitual entre sexualidade física e psíquica —, a tensão sexual se transforma em angústia.[10]

As causas podem ser variadas: desenvolvimento insuficiente da sexualidade psíquica, sua repressão, seu declínio, alheamento habitual. Em todos este casos, a acumulação de tensão física e a evitação da descarga provocam um acúmulo de tensão que se transforma em angústia, que é “a sensação de acumulação de um outro estímulo endógeno, o estímulo de respirar”.[11] Seus sintomas são a falta de ar, palpitações (sensações presentes também no coito). Se na histeria a excitação psíquica acumulada toma o caminho errado, na angústia é a tensão física acumulada que não consegue entrar no âmbito psíquico e portanto permanece no plano físico. São evidentes os paralelos deste texto com algumas teses que Freud desenvolverá sucessivamente e que inicialmente encontramos esboçadas no Projeto para uma psicologia científica (1895).

No segundo texto sobre o qual gostaria de me deter, Primeiros passos em direção a uma teoria da neurose da angústia (1895) em “Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada neurose de angústia”,[12] Freud procura retomar sua conceituação, em três tópicos, sem contudo apresentar grandes avanços.

1. Em primeiro lugar, a angústia ao que parece não pode ser atribuída a nenhuma origem psíquica. No caso do coito interrompido, isto seria comprovado pelo fato de mulheres indiferentes ao perigo de nascer uma criança, estarem sujeitas à neurose de angústia tanto quanto as que temem o fato.

2. Em segundo lugar, a neurose de angústia seria acompanhada por um decréscimo da libido sexual entendida como ‘desejo psíquico’, embora paradoxalmente tenha sua origem numa satisfação sexual insuficiente.

3. Em terceiro lugar, a angústia, correspondente a essa excitação acumulada, seria de origem somática. O que se está acumulando seria uma excitação somática; de natureza sexual, acompanhada por um decréscimo da participação psíquica nos processos sexuais.

Portanto, o mecanismo de neurose de angústia deve ser buscado “numa deflexão da excitação sexual somática da esfera psíquica e no conseqüente emprego anormal desta excitação”.[13] A seguir, Freud tenta descrever como esta acumulação de excitação acontece no plano somático. Uma pressão nas paredes das viscículas seminais, ao atingir um certo limiar, consegue vencer a resistência que lhe impede de atingir o córtex cerebral e expressar-se como um estímulo psíquico, ativando as representações sexuais presentes na psique e provocando a tensão libidinal, que se traduz numa ânsia de eliminar a tensão. A descarga psíquica exigida é uma ação específica e adequada (que Freud identifica com a realização do coito), que, ao libertar as terminações nervosas da carga de pressão exercida sobre elas, permite ao condutor subcortical estabelecer novamente sua resistência (nas mulheres o processo seria basicamente similar, embora Freud tenha dificuldades em explicar como isto acontece em detalhe). Neste texto, Freud estabelece um paralelo entre neurastenia e angústia. “A neurastenia surge sempre que a descarga adequada (a ação adequada) e substituída por uma menos adequada”, como por exemplo na masturbação substituindo o coito.[14] Já a neurose de angústia “é produto de todos os fatores que impedem a excitação sexual somática de ser psiquicamente elaborada”,[15] pois ela é subcorticalmente despendida em reações totalmente inadequadas, sem que consiga ativar representações psíquicas adequadas. Mais uma vez, Freud aponta alguns fatores etiológicos da angústia.

1. Abstinência intencional: a excitação somática se acumula e é voluntariamente desviada para outros canais;

2. Excitação não consumada;

3. Coitus reservatus: em conseqüência desta deflexão psíquica a libido desaparece gradualmente;

4. Senectude (aumento tão grande na produção de excitação que a psique não consegue manejá-lo);

5. Angústia virginal: a excitação sexual não consegue se ligar pois as representações sexuais não estão suficientemente elaboradas;

6. Ejaculação precoce e coito interrompido: o desejo libidinal do ato insatisfatório tende a desaparecer;

7. Masturbação: gera neurastenia e tende a um estado de abstinência.

8. Estresse: a psique, graças a uma deflexão, parece não conseguir mais manejar a excitação somática: não apresenta etiologia sexual, mas sim um mecanismo sexual.

Em todos estes casos, o sintoma da neurose substitui “a ação específica omitida posteriormente à excitação sexual”,[16] por isso na angústia aparecem sintomas que de alguma forma lembram o coito (falta de ar, aceleração dos batimentos, etc.). Finalmente, Freud faz neste texto uma distinção entre afeto e neurose de angústia. O afeto de angústia é provocado pela incapacidade da psique lidar com um estímulo ameaçador vindo de fora (perigo). Já a neurose de angústia é uma resposta a um estímulo interno com o qual não consegue lidar (o afeto passa, a neurose é crônica).

No capítulo Relação com as outras neuroses (que também faz parte do texto , “Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada neurose de angústia”),[17] Freud tenta estabelecer um paralelo entre a neurose de angústia e as outras neuroses, observando que os sintomas de angústia costumam ocorrer juntamente com a neurastenia, a histeria, as obsessões e a melancolia. Um dos fatores parece desencadear os outros. A neurose de angústia teria em comum com a neurastenia o fato da fonte de excitação residir no campo somático e não no psíquico, porém a angústia é devida a um acúmulo de excitação, enquanto a neurastenia é devida a um empobrecimento da excitação

Em relação à histeria, há, em ambos os casos, um acúmulo de excitação, assim como uma insuficiência psíquica que provoca processos anormais e um desvio da mesma para o campo somático. A diferença é que, na angústia, a excitação é puramente somática, na histeria, é psíquica (provocada por um conflito). As duas, observa Freud, costumam combinar com regularidade.

Na Carta n. 75 a Fliess (1897),[18] Freud introduz um elemento importante para a compreensão da angústia: o recalque. Enquanto os textos anteriores se concentram sobre a questão econômica, este texto introduz uma perspectiva dinâmica. No adulto, regiões como a boca e o ânus, que na infância causavam prazer, causam nojo. Se o prazer persiste, temos uma perversão. Na infância, a liberação da sexualidade não é tão localizada, ela ocorre de forma difusa, podendo interessar qualquer parte do corpo. Num estágio de desenvolvimento mais avançado, na fase adulta, a liberação da sexualidade ocorre mediante:

1. Estímulos periféricos sobre os órgãos sexuais;

2. Estímulos internos, que surgem dessas regiões;

3. Idéias (traços de memória de uma excitação dos órgãos sexuais que ocorreu na infância).

Tal excitação é postergada, pois remete a uma estimulação que ocorreu inicialmente na infância, tornando-se mais intensa daquela inicial. Isto pode ocorrer também conectando lembranças de excitações ligadas a zonas sexuais abandonadas (boca, ânus). Neste caso, contudo, o resultado não é a liberação da libido, mas uma sensação de desprazer, semelhante à repugnância. Isto é o recalcamento. Algo que livre poderia levar à angústia, ou ligado à rejeição (estado afetivo ligado a processos intelectuais tais como moralidade e vergonha) provoca o recalcamento normal.[19] No caso das neuroses, Freud observa que, na infância, as experiências sexuais que afetam os genitais, nos homens, nunca provocam neurose, apenas compulsão masturbatória. Quando porém as experiências infantis remontam à excitação ligada à boca e ao ânus, o despertar da libido pode levar ao surgimento do recalque e da neurose. Desta forma, a libido “não consegue (…) passar à ação ou à tradução em termos psíquicos, mas é obrigada a deslocar-se numa direção regressiva (como acontece nos sonhos)”.[20] Portanto, o que favorece o recalque e o surgimento do sintoma é a repugnância. Ao produzir-se o sintoma, não se produzem idéias orientadas para um objetivo (objeto). É importante a conclusão à qual Freud chega, pois, a partir deste momento, passa a diferenciar os fatores que causam a libido e aqueles que causam a angústia,[21] introduzindo o conceito de recalque, embora admita a dificuldade de esclarecer o que transforma a necessidade em repugnância. Isto nos levará, como veremos a seguir, a uma mudança na sua maneira de conceber a angústia.

O conceito freudiano de angústia: segunda formulação

Na sua primeira formulação Freud concebe a angústia como uma deflexão automática da energia pulsional acumulada pelo bloqueio imposto à sua exteriorização. Este conceito é reformulado no Ego e o Id (1923), onde a angústia passa ser considerada como uma reação do ego diante de um perigo. Esta concepção já tinha sido anunciada na Conferência XXV de 1917,[22] onde Freud diz que “a geração da ansiedade é a reação do ego ao perigo”. Assim como a ansiedade realista surge diante de um perigo externo, neste caso a ansiedade surge diante de um perigo interno, ou seja de uma exigência da libido percebida como “perigosa” e acaba resultando na formação de sintomas.[23] Neste sentido, “a repressão corresponde a uma tentativa, feita pelo ego, de fugir da libido sentida como um perigo”. Como podemos ver, já se estabelece uma ligação entre angústia, repressão e sintoma.
É contudo no ensaio de 1926 Inibições, sintomas e ansiedade,[24] que Freud formula definitivamente o que é a angústia sob um ponto de vista metapsicológico. O ego, na visão freudiana, é vinculado ao id. “O ego é (…) a parte organizada do id”.[25] Nisto consiste sua força e sua fragilidade. Força quando se alia ao id, fragilidade, quando se opõe a ele. Na sua função de mediador entre as instâncias vindas do id, do superego e da realidade externa, o ego, diante de um impulso do id que poderia provocar um desprazer por ser conflitante com a realidade externa e/ou com as exigências do superego, emite um sinal, com o intuito de bloquear o processo interno em andamento. Este sinal de desprazer, destinado a efetuar o recalque valendo-se do Princípio de Prazer, é a angústia. Desta forma, a angústia fica ligada ao processo repressivo. Freud revê portanto a tese anterior em que a ansiedade era vista como um deslocamento da libido reprimida.[26] No entanto, uma questão fica em aberto: a angústia precede, é concomitante ou se é subseqüente à repressão? Como observa Mezan, Freud opta “pela precedência da angústia à repressão em todos os casos”,[27] tanto na fase inicial, como naquela que segue à formação de sintomas (o sintoma, de fato, renova o conflito defensivo e o processo de repressão, pois remete a impulsos reprimidos). A angústia precede a repressão pois está ligada ao sinal de desprazer que possibilita a repressão. O aumento de carga energética excitatória necessária para gerar a sensação de desprazer é retirada do próprio investimento libidinal, seguindo uma trilha que “é a reprodução de alguma experiência que encerrava as condições necessárias para tal aumento de excitação”.[28] Freud faz remontar tais experiências arcaicas a várias situações, que vão da angústia provocada pelo trauma do nascimento, àquela provocada pela ausência do objeto amado (mãe) e pelo medo de sua perda, ao medo de castração, decorrente do Complexo de Édipo. A respeito do medo de castração, Freud observa que, “com a despersonalização do agente parental, (…) o perigo se torna menos definido” e a ansiedade de castração se transforma em “ansiedade moral”.[29] Em resumo, a angústia é um sinal de desprazer, ativado pelo Princípio de Prazer, diante de um aumento da carga excitatória, cuja função é inibir o investimento do desejo percebido como ameaçador pelo ego. Contudo, a repressão não mata o impulso. Após o recalque, o impulso reprimido fica vagando pelos territórios do inconsciente, fora do alcance do ego, à procura de se satisfazer achando um caminho alternativo, o sintoma.

Na perspectiva da metapsicologia, a angústia adquire toda a sua complexidade. Ela não é apenas um deslocamento da libido, quando esta não consegue a satisfação pelo caminho desejado, mas um processo que, por estar relacionado com o recalque, se insere no âmago do psiquismo, na encruzilhada entre o ego, as forças do inconsciente, as instâncias do superego e aquelas do Princípio de Realidade. Na visão psicanalítica, o ser humano é um ser dividido entre forças que atuam em tensão dialética. De um lado, temos as poderosas forças do inconsciente que o impelem à procura da satisfação do desejo. Do outro, os limites impostos pela realidade externa e as normas culturais e morais internalizadas a partir do superego. De um lado, o fechamento narcísico e a agressividade; do outro, a necessidade de ser amado, que leva em direção ao outro e motiva as relações de objeto. Em última instância, poderíamos dizer que a angústia está de alguma forma ligada ao conflito entre pulsão de vida e pulsão de morte, embora Freud aluda a isso apenas de relance, dizendo que angústia pode estar relacionada ao medo da morte, sem aprofundar ulteriormente o tema.[30] A questão será retomada por Melanie Klein que, a partir da Pulsão de Morte, desenvolverá a sua teoria sobre a ansiedade esquizo-paranóide e a ansiedade depressiva.

A partir destas considerações, podemos dizer que, na perspectiva psicanalítica, a angústia representa um aspecto fundamental do psiquismo humano e não apenas uma situação psíquica contingente. Neste sentido, acredito seja interessante estabelecer um paralelo com as considerações da filosofia de cunho existencialista, que faz da angústia o centro de sua reflexão sobre o homem e sobre o ser. Examinarei primeiro a maneira como o tema é abordado em Kierkegaard, Heidegger e Sartre, para depois tentar uma síntese.

Angústia e desespero (Kierkegaard)

Numa época em que a reflexão filosófica é dominada pelas idéias de Hegel e pelo positivismo de Compte, Kierkegaard mergulha num caminho solitário e corajoso, fazendo do ser humano o centro de sua reflexão. Um caminho árduo que, para Kierkegaard, não foi mera especulação e sim uma opção que o levará a dizer: “Minha vida não será, apesar de tudo, mais do que uma existência poética”.[31] O sujeito para o qual o filósofo dinamarquês se volta, não é o homem dos compêndios filosóficos, um conceito abstrato, e sim o homem capturado no drama de sua existência, no dia-a-dia de suas contradições. Como o próprio Sartre comenta: “A vida subjetiva, na própria medida em que é vivida, não pode jamais ser objeto de um saber, ela escapa ao conhecimento… Essa interioridade que pretende afirmar-se contra toda filosofia, na sua estreiteza e profundidade infinita (…), eis o que Kierkegaard chamou de existência”.[32] É por causa desta abordagem que muitos vêem na sua filosofia a raiz do existencialismo, em oposição aos sistemas racionalistas e, em particular, ao sistema hegeliano. Para o filósofo dinamarquês existem três opções de vida, a estética, a ética e religiosa. Na primeira, para usar uma terminologia freudiana, o homem vive entregue à sua libido, na segunda é dominado pelo superego, na terceira prevalece a sublimação da fé. Podemos observar que, na perspectiva da filosofia de Kierkegaard, o objetivo não é estabelecer qual dessas opções seja a escolha certa do ponto de vista ético, apenas trata-se de uma descrição fenomenológica da existência humana. Isto porque, Kierkegaard não teria, a partir de sua visão filosófica, que prescinde de uma metafísica, como estabelecer qual dessas vidas possíveis seria a melhor. Mas é evidente que, ao empregar o conceito de “salto” existencial, Kierkegaard acaba se mostrando inclinado para o terceiro caminho, dando a impressão de uma ascensão.

A dimensão estética é caracterizada por uma vida mergulhada na plenitude do momento, voltada para capturar o gozo da existência, embalada na “valsa do instante”, uma situação “na qual você não aspira a nada, não deseja nada; a única coisa que você poderia desejar seria uma vareta de condão que pudesse lhe oferecer tudo, para depois usá-la para limpar o seu cachimbo”.[33] Este tipo de existência, marcada pela exterioridade, a mudança e o imediatismo, leva à experiência do desespero. Para fugir da prisão de seus desejos, o homem precisa dar um salto, que o leva ao estágio ético. Se o modelo da existência estética é Don Juan, o modelo da existência ética é o marido fiel. O padrão da mudança e da falta de engajamento é substituído por aquele da repetição, da fidelidade, do compromisso.

A repetição é um vestido que não fica puído, que não fica estreito, que veste bem, aderindo suavemente ao corpo (…). A repetição é a esposa amada da qual nunca você cansa. É necessária a juventude para poder esperar e para relembrar, mas é necessária coragem para querer a repetição. Porque a esperança é o fruto que tenta , mas não sacia; a lembrança é a moeda que não tem valor suficiente para cobrir as necessidades, mas a repetição é o pão cotidiano que sustenta.[34]

O mundo do homem ético é dominado por uma ordem universal, que o faz sentir perdido numa multidão anônima, sem autonomia. Ao perceber-se condenado à solidão consigo mesmo, o homem começa a perceber também sua inevitável contradição, sua condição inelutável de pecador e a necessidade do arrependimento. As leis universais já não podem mais ajudá-lo; surgem assim o desespero e a angústia, pois o indivíduo se vê confrontado com um vazio que não pode ser preenchido nem pelos prazeres estéticos, nem pelas obrigações éticas.[35] Surge aqui a necessidade do homem “suspender o ético” para entregar-se totalmente à dimensão religiosa, vivendo assim o paradoxo de uma subjetividade que é essencialmente dependente da infinitude de um Deus, percebido como absolutamente real e absolutamente incompreensível.

Para Kierkegaard, portanto, a angústia tem origem na percepção do limite, que marca inexoravelmente a vida humana.

O homem é uma síntese de infinito e finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, é, em suma, uma síntese. Uma síntese é a relação de dois termos. Sob este ponto de vista, o eu não existe ainda.[36]

O homem portanto não é um ser “dado” , mas pura possibilidade, que passa a existir no exercício da liberdade e na experiência do limite. Nem a entrega irrestrita ao instinto, nem a submissão à “razão”, em busca de uma motivação ética que possa dominar o instinto, impedem que o homem se encontre com o seu limite existencial, com a percepção de uma dependência radical e com a experiência angustiante da liberdade. O homem se percebe como um ser que só encontra o seu sentido olhando para o Absoluto, que se faz presente numa experiência interior de proximidade e de total separação. É nesta experiência existencial intransponível de nossa limitação e de nossa liberdade, que surge a angústia, apontando para um ir além, para a superação do limite, numa experiência de entrega ao totalmente Outro, na escuridão da fé. O paradigma desta experiência de fé é Abraão.

Angústia e existência inautêntica (Heidegger)

Heidegger aborda o problema do ser numa perspectiva fenomenológica de cunho husserliano, distanciando-se da visão metafísica tradicional. Vamos examinar aqui a fase inicial da filosofia heideggeriana, principalmente a que emerge da obra Ser e tempo,[37] deixando de lado a segunda fase, que se distancia do objetivo do nosso trabalho.[38] O ponto de partida de sua reflexão é o ser que se dá a conhecer imediatamente, ou seja o próprio homem, por ele caracterizado como dasein (ser-aí).[39] Em seu aspecto cotidiano, a vida humana se apresenta como uma forma inautêntica de existência, marcada por três características: a facticidade (Faktizität), a existencialidade (Existentialität) e a decadência (Verfallen) . O cotidiano como facticidade manifesta o homem como ser-no-mundo (in-der-Welt-sein), jogado no mundo poderíamos dizer, sem que isso tenha sido uma escolha sua. A existencialidade é um aspecto do cotidiano que manifesta o ser humano como sendo uma antecipação de suas possibilidades, objetivação daquilo que ainda não é. Finalmente o ser humano se manifesta como um ser decaído, pois as preocupações cotidianas da existência inautêntica o desviam do seu projeto essencial, alienando-o da tarefa principal de tornar-se ele-mesmo. “A decadência dissimula e recalca existencialmente a autenticidade do ser-si-mesmo”,[40] mas, ao ocultá-la também a revela. A característica do ser-aí é fugir diante de si. No entanto, é justamente porque “o ser-aí é ontologicamente e existencialmente defrontado consigo mesmo, por meio de uma revelação da qual não pode se separar, que ele pode fugir diante de si”.[41]

A análise do cotidiano e do dasein como forma de existência inautêntica, levam Heidegger a concluir que o homem é um ser marcado pela angústia,[42] que, por sua vez, provoca uma espécie de “aversão” diante de um ser percebido como ausência. “A aversão constitutiva da decadência se funda (…) na angústia”.[43] Heidegger observa que a angústia é geralmente percebida como um sentimento parecido com o medo diante de algo ameaçador.[44] No entanto, o que é percebido como ausente na experiência da decadência, não pertence à realidade como dada (da-sein), portanto a angústia, neste caso, não é parecida com o medo. O que determina a angústia é simplesmente o fato do homem se perceber como ser-no-mundo (in-der-Welt-sein).[45] Trata-se de um sentimento que, para Heidegger, não tem uma razão específica, simplesmente se manifesta como se o mundo perdesse o seu sentido (Unbedeutsamkeit). A angústia passa a ser algo que “manifesta ao ser-aí.[ao homem] (…) seu ser-livre-para… (propensio in…) a autenticidade do seu ser como possibilidade [grifo meu] que é agora e desde sempre”. Ao mesmo tempo, este ser é percebido também como aquele ao qual o ser-aí, como ser-no-mundo, é entregue. O mundo é assim experimentado como algo que aponta para o nada. “O que angustia a angústia manifesta um ‘nada que está em lugar algum’”.[46] A experiência do nada faz com que o homem se sinta essencialmente um ser-para-a-morte. Diante disso, apresentam-se duas opções. A fuga, o fechamento na existência inautêntica, ou a tentativa de transcender, procurando atribuir um sentido ao ser:

(…) a angústia traz a possibilidade duma revelação privilegiada, isto porque a angústia isola. Este isolamento retira o ser-ai de sua decadência e torna manifestas para ele a autenticidade e inautenticidade como possibilidades do seu ser.[47]

Angústia e liberdade radical (Sartre)

A filosofia de Sartre, como aquela de Heidegger, é profundamente marcada pela visão fenomenológica. O ser sartriano se desdobra em duas dimensões: o ser-em-si e o ser-para-si. . O ser-em-si, o fenômeno, opaco para si mesmo, simplesmente é, caracterizando-se como uma realidade marcada pelo absurdo, pelo fechamento sobre si mesmo. O ser do fenômeno é posto pela consciência, o ser-para-si, definido “como sendo aquilo que não é e não sendo aquilo que ele é”.[48] Para Sartre, a consciência é uma fissura dentro do ser: por ela irrompe o nada no mundo. Através dessa fissura o ser-para-si pode ultrapassar suas barreiras, caracterizando-se como possibilidade de transcendência do limite, como espontaneidade criadora. As duas dimensões do ser convivem no tempo e constituem a existência humana. A perspectiva de Sartre é materialista, portanto a consciência, por seu caráter intencional, de relação com o mundo, se identifica com o corpo. Devido à sua conotação corporal, o ser-para-si se caracteriza como ação e, portanto como liberdade. O que caracteriza o ser-para-si é a capacidade de fazer-se. O homem não é “aquilo que é”, ele se faz. A responsabilidade passa a ser, portanto, um ponto fundamental na filosofia de Sartre. Cada um é aquilo que se faz e não pode atribuir esta responsabilidade a Deus ou a uma natureza que o transcende e o precede. É neste sentido que a existência antecede a essência.[49] “O homem (…) não é passível de uma definição, porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo”.[50] Existe uma “escolha original”, espontânea, no homem que antecede o próprio “querer”.[51] Por não existir uma essência pré-dada, os valores são uma criação unicamente humana e não algo em que o homem possa apoiar-se para justificar suas escolhas. Isto não quer dizer que o existencialismo sartriano tenha uma visão amoral da existência, pois escolher é afirmar o valor do que estamos escolhendo e “nada pode ser bom para nós, sem o ser para todos”.[52] Portanto, ao moldarmos nossa imagem, “nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, pois ela engaja a humanidade toda”, ao escolher-me, estou escolhendo o homem.[53] Para Sartre, o que dá sentido à existência humana é o compromisso com a história.

Como se insere, neste cenário, o problema da angústia? O homem, ao realizar suas escolhas, percebe que não é apenas o que escolheu ser, mas que é também um legislador; ele se depara com sua “total e profunda responsabilidade”. É esta percepção que faz da angústia uma condição inerente ao ser humano. A escolha pessoal adquire de fato uma dimensão transcendente, que remete a uma situação parecida à que descreve Kierkegaard ao falar da angústia de Abraão. “Tudo se passa como se a humanidade estivesse de olhos fixos em cada homem e se regrasse por suas ações”.[54] A angústia, no entanto, não impede de agir, ao contrário é a própria angústia que constitui a condição da ação, pois ela pressupõe uma pluralidade de escolhas possíveis. O caminho escolhido, no entanto, não tem em si nenhum valor, a não ser aquele de ter sido escolhido. Ao fazer uma escolha, o homem introduz no mundo uma das tantas existências possíveis e nela engaja os outros homens. Diante disso, o homem experimenta a sua radical liberdade. Para Sartre Deus não existe, portanto tudo é permitido: “o homem está desamparado porque não encontra nele próprio nem fora dele nada a que se agarrar (…) não encontra desculpas”.[55] Não existindo referência a uma natureza humana dada e definitiva, o homem é livre, ele é liberdade radical: “o homem está condenado a ser livre”.[56] Escolher é sempre morrer, porque ao escolher uma das existências possíveis, estou ao mesmo tempo morrendo para todas as outras. Isto introduz uma situação de desamparo, pois somos nós mesmos que escolhemos o nosso ser. Neste no-sense está o sentido de nossa vida. “(…) O homem está constantemente fora de si mesmo; é projetando-se fora de si que ele faz com que o homem exista”.[57]

Os paralelos entre Psicanálise e a Filosofia de cunho existencialista

A análise dos textos de Kierkegaard, Heidegger e Sartre nos permite estabelecer agora alguns paralelos com a Psicanálise, tentando ver quais são os pontos convergentes e divergentes entre estas diferentes abordagens. Antes disso, contudo, quero sublinhar mais uma vez que estamos tentando juntar perspectiva hermenêuticas diferentes, o que vai dificultar nossa tarefa e nos expor ao perigo de fazer extrapolações indevidas. Tentarei portanto manter a distinção entre as duas perspectivas, onde isto se torne necessário, na esperança de nos beneficiar com os paralelos, sem cairmos na armadilha de anular as diferenças. Em primeiro lugar, parece-me que, apesar de partir de pressupostos completamente diferentes, os três autores têm uma visão bastante próxima dos processos que configuram a angústia. Um primeiro conceito parece-me fundamental: a existência precede a essência. Isto significa que ser humano não tem um roteiro pré-definido, que dê sentido e direção à sua existência. O que o caracteriza essencialmente é o fato de ser uma pura possibilidade. O segundo conceito nasce do primeiro: ao perceber-se como pura possibilidade o ser humano experimenta o drama de sua liberdade. O ser humano é um ser que se faz, a partir de uma experiência de ser-no-mundo, percebida como absoluta potencialidade, caracterizada pelos sentimentos do absurdo, da náusea, do nada, que brotam da total falta de referenciais que ofereçam um suporte seguro e tranquilizador às escolhas humanas. Diante dessa situação, emerge o terceiro conceito: a angústia. Ao se deparar com o seu limite existencial, como o nada, com a ausência de algo que dê sentido e coesão à sua existência, o ser humano experimenta a angústia. A angústia é ao mesmo tempo um sentimento diante da existência como limite, mas é também o motor que impele o ser humano a se tornar Si-mesmo, ponto de partida para um salto que o constitui como ser humano. Para Kierkegaard isto se dá com a experiência da fé (Abraão), para Heidegger abraçando a existência autêntica, para Sartre assumindo a responsabilidade das próprias escolhas.

Para os três autores, portanto, o drama humano e a angústia se instauram a partir da percepção que não existe um ser preestabelecido, um ponto de referência absoluto sobre o qual moldar a própria existência. O homem fica desamparado diante de sua liberdade. Podemos estabelecer um paralelo entre a angústia que surge diante da experiência da liberdade e aquela que surge dos processos inconscientes, descritos por Freud? De alguma forma o inconsciente representa o núcleo vital do ser humano no seu estado puro, a pura potencialidade. O inconsciente é puro pulsar; seus conteúdos vão se organizando em núcleos imagéticos, a partir de experiências arcaicas que surgem a partir das relações de objeto. Duas forças opostas o percorrem, uma levando-o para fora, outra levando-o ao fechamento; uma impelindo para a ação, outra para a fixidade pulsional. A liberdade humana se instaura a partir deste confronto, na medida em que ele se torna acessível à consciência.[58] A diferença básica entre as duas hermenêuticas da angústia é que uma parte dos processos conscientes e a outra dos processos inconscientes. Mas tanto num caso como no outro, a angústia surge da experiência de algo ameaçador para o ego. “A angústia é um medo imaginário e necessário – sem objeto real, sem nada possível. É por isso que nos pega e nos corrói. Como se poderia vencer, quando não há nada para enfrentar?”.[59] Em ambos os casos, a angústia é um sinal que aponta para esse perigo[60] e é também uma excitação que pode levar a um movimento psíquico. Para Freud, este movimento é repressivo (recalque); para os filósofos, é um movimento de certa forma criativo, que leva a um salto existencial. Para aprofundarmos esta diferença, precisamos antes recorrer ao conceito de superego. Na perspectiva freudiana, o que está à raiz do recalque é o ego, obedecendo às instâncias do superego. Em Kierkegaard e em Heidegger podemos encontrar elementos que, de alguma forma remetem ao superego (Deus e a existência autêntica); em Sartre, não temos aparentemente nada de parecido.[61] No entanto, trata-se de uma ausência só aparente. Existe de fato, na filosofia sartriana, um forte apelo para a responsabilidade, um senso ético que não se fundamenta ontologicamente, mas que se impõe como um imperativo. Isto basta para que a experiência humana se instale como conflito, como tensão entre a liberdade absoluta e o universo restrito da necessidade e da possibilidade. Podemos portanto dizer que também no horizonte da filosofia se perfila, ao longe, a figura de um superego, parte do imaginário consciente, para filosofia, imagem introjetada, para a psicanálise. Tanto num caso como no outro, a angústia está ligada a uma instância de inibição, que nos remete, por um lado, às instâncias culturais ou religiosas e, por outro, a uma instância introjetada a elas ligada. Mas, voltando ao nosso tema, como associarmos o recalque com este ato criativo? O que nos permite estabelecer uma ponte entre as duas concepções é o conceito de sublimação. Na sublimação, a energia psíquica pulsional recalcada ou suprimida[62] é orientada através de um processo de simbolização. Neste sentido, a angústia acaba tendo, em última análise, um sentido “criativo”, mesmo na visão psicanalítica, desde que o processo de recalque ou de supressão se encaminhe para uma neurose “saudável”. A angústia de fato favorece o encontro entre a consciência e o inconsciente, entre uma força criativa, pujante e outra repressiva. Em última análise, possibilita que o ser humano se depare com o paradoxo que é existir, num horizonte consciente em que confluem as energias psíquicas inconscientes, a realidade externa e as instâncias culturais introjetadas. Como diz Compte-Sponville, a angústia faz parte de nossa vida e nos abre “para o real, para o futuro, para a indistinta possibilidade de tudo”.[63] Aceitá-la como parte de nossa vida, é um sinal de maturidade, pois “a angústia e a esperança andam juntas”.[64]

A angústia na tradição cristã[65]

Vamos agora analisar brevemente o conceito de angústia no horizonte da tradição cristã. No seu livro Ansiedade Cultural,[66] Rafael López-Pedraza, analista junguiano e professor de mitologia na Escola de Letras da Universidade Central da Venezuela, introduz algumas considerações interessantes para o nosso tema, ao fazer uma leitura da angústia no quadro cultural da civilização ocidental e ao relacioná-la a um conflito que existiria no plano psíquico entre a visão monoteísta da Bíblia e a visão politeísta do imaginário religioso pagão.[67] A perspectiva deste autor não é psicanalítica, mas pode nos ajudar. Ele observa que o próprio Freud, apesar de ter recorrido ao imaginário grego (Complexo de Édipo, Eros e Thanatos), seria dominado pela perspectiva monoteísta e isto explicaria a sua tendência a descrever o psiquismo como oposição consciente/inconsciente, mediada pelo ego. Haveria, nesta perspectiva, uma ”identificação do ego com o monoteísmo“, que faria do ego o “marco da repressão daquilo que não é monoteísmo”. O autor evidentemente opõe o monoteísmo, centrado num Deus Todo-Poderoso, “carente de imagens”, identificado com a cultura e a consciência, ao politeísmo, em sua pluralidade de mitos, repletos de imagens arquetípicas, e portanto, na visão deste autor, ligadas ao inconsciente (Self de acordo com a terminologia junguiana).[68] Do choque entre estas duas visões nasce a ansiedade cultural, como ele a define, e, da perspectiva psíquica ligada ao monoteísmo, a culpa, que ele define como uma retórica do monoteísmo.[69] “O discurso monoteísta está invariavelmente orientado pela culpa e é, certamente, culpabilizante e está em oposição psíquica a indubitável riqueza das imagens arquetípicas consistentes.”[70] A visão sincrética se impõe para este autor como uma necessidade pois ambos os quadros são constitutivo do inconsciente.[71]

Embora se trate de considerações que nascem de um contexto que não é psicanalítico, elas nos permitem de focalizar algo que é fundamental para a compreensão da teoria da angústia em chave psicanalítica. A meu ver, a visão junguiana frisa a unidade, ela é mais otimista na sua maneira de perceber a relação entre o ego e o inconsciente. O processo de individuação torna-se portanto menos “adaptativo“ que a elaboração proposta no processo analítico. Aparentemente, o ego fica mais aberto à força “criadora” do inconsciente e menos oprimido pelos conflitos entre as exigências do id e as instâncias do superego. No entanto, nos surpreende quando o autor citado diz: “A culpa me aborrece tremendamente e me faz sentir sua inutilidade psicológica”.[72] A meu ver, o gênio de Freud consistiu justamente em perceber o caráter radicalmente dialético do ser humano e em descrever o quadro de forças que agem no psiquismo em toda a sua dramaticidade, assim como foi percebida pela filosofia de cunho existencialista. A culpa portanto não seria eliminada se, como alguns alegam, Cristo tivesse morrido numa cama e não na cruz. A culpa é estritamente ligada, como mostra claramente Melanie Klein, à estrutura psíquica do ser humano, que vive uma tensão constante entre forças que brotam de princípios opostos, a pulsão de Vida e a Pulsão de Morte. Uma tensão que torna a angústia um processo inevitável para o psiquismo. De qualquer forma, mesmo discordando parcialmente dos pressupostos de López-Pedraza, sua análise nos ajuda a perceber a importância cultural do cristianismo e a indagar sua possível influência no psiquismo do homem ocidental. Vamos portanto nos deter sobre a maneira como a própria Bíblia concebe a angústia.

Na Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB), uma versão portuguesa que, seguindo o padrão da versão francesa (TOB), se caracteriza por uma tradução mais próxima do original grego e hebraico, a palavra angústia é usada 56 vezes, no singular, e 16 vezes, no plural. A palavra ansiedade recorre 2 vezes.[73] Por trás da palavra angústia/ansiedade encontramos a raiz hebraica çar que significa perigo, risco, aperto, apuro, aflição, angústia. Curiosamente, a mesma raiz é freqüentemente associada, no contexto em que aparece o termo angústia, aos termos: inimigo, adversário, rival, contrário, atacante, agressor. Fica clara, portanto, a relação da palavra angústia com uma situação de perigo. Nos textos originariamente escritos em grego, o termo angústia está ligado a várias expressões ademonein, oudunomenoi e às palavras agonía, tlífis (mais próximo a tribulação), stenokoría. Às vezes, na Bíblia, o termo é associado à palavra “treva(s)”, entendida como ausência total de luz, que evoca o caos primitivo, o lugar onde operam o mal e a morte. De maneira geral, podemos identificar uma associação da palavra angústia com as seguintes situações:

· Perigo externo iminente, perigo de morte, num sentido próximo ao que Freud concebe como angústia realista.[74]

· Conflito interno, que remete a um desejo (consciente ou inconsciente) não realizado, por supressão ou por recalque.[75]

· Afastamento de Deus, é a forma mais profunda de angústia, no sentido bíblico, pois remete a uma situação existencial de desamparo total.[76]

Sobre este último tipo de angústia, eu gostaria de me deter um pouco, pois reflete o aspecto mais trágico da existência humana, próximo daquele descrito pela filosofia de cunho existencialista, e o que mais se parece com a situação do homem contemporâneo. Os dois textos bíblicos do Novo Testamento que, com maior clareza, trazem esse tipo de experiência psíquica, se referem à noite que Cristo passa no Getsêmani, poucas horas antes de sua morte na Cruz. Em ambos os textos a situação de angústia é expressa pelo verbo ademonein.

Não pretendo aqui fazer uma análise teológica. Minha intenção é apenas fazer uma reflexão sobre a angústia à luz da tradição cristã, levando em conta o seu significado para a cultura ocidental. Não me deterei portanto sobre as importantes discussões teológicas e exegéticas a respeito da maneira como estes textos bíblicos podem ser interpretados, na perspectiva histórica, a partir do contexto social e político da época de Jesus de Nazaré, ou na perspectiva mais espiritualista e essencialista, do Cristo Pantocrator. O importante aqui, é como eles de fato são recebidos pela tradição cristã, que foi progressivamente migrando de uma visão religiosa judaica, em que a salvação se dá pela intervenção de Deus na história do Povo Eleito, para uma visão mais ontológica, digamos, mediada pelo encontro do cristianismo com a filosofia grega.[77] Levando em conta estas premissas, vamos tentar penetrar esta página central do cristianismo à luz de uma visão que de fato, em nível existencial, é a que mais está presente no imaginário popular.

O drama do homem Deus está consumando-se. Rejeitado pelas autoridades religiosas de sua época (os representantes da Lei e portanto do superego), ele sabe que deverá enfrentar o abandono por parte do povo, que tentou beneficiar, dos seus amigos mais íntimos, e, o que é mais dramático, ele começa a “sentir” o abandono de Deus e, com isso, o perigo do fracasso definitivo de sua missão. Este abandono se manifesta de forma paradoxal na Cruz, com o grito: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”.[78] Esta expressão é colocada na boca de Cristo a partir do Salmo 22(21), que trata do sofrimento do justo, abandonado por Deus à mercê de seus inimigos. Trata-se de uma contradição em termos, Deus clamando pelo abandono de Deus. Um paradoxo que marca a teologia cristã posterior e a sua visão do homem. Deus cindido, em que o humano parece se sobrepor ao divino, cegando a consciência divina, numa crise que beira a esquizofrenia.[79] Emerge uma situação de total impotência, em que a vida parece dobrar-se definitivamente à morte. Deus, o supremo objeto de desejo, parece abandonado a criatura. Surge a dúvida do sentido da própria existência e, com ela se instaura o sentimento de culpa.

Mais uma vez a Bíblia sublinha esta situação, com o recurso às trevas,[80] que cobrem o Templo de Jerusalém, obscuro pressagio de sua futura destruição. No entanto, trata-se de uma destruição necessária, pois é somente a parir de um novo Templo, o próprio Cristo, o humano/divino cindido, que poderá surgir uma nova maneira de ver a religião em sua função de ligar (religare) o homem a Deus.[81] O novo Templo é esse poço de angústia, é o limiar da loucura, onde a identidade parece ameaçada, onde a pulsão de vida parece alcançar o ponto 0. Contudo, para a teologia cristã, a angústia é um momento necessário, que deve ser experimentado para se chegar à ressurreição.[82] A angústia é uma situação psíquica que aponta para uma nova retomada da vida. Um novo pulsar da vida, que leva em si as feridas da morte,[83] mas que já não enfrenta as barreiras corporais da mesma forma: elas podem ser transpostas (Cristo entra no Cenáculo a portas fechadas).[84] O limite parece perder sua característica mortal, quase a indicar que o percurso da angústia é um ato criador em que dimensões opostas se unem, transpondo os limites do espaço e do tempo. “Assim sendo, foi para todos os homens que, pela graça de Deus, [Cristo] provou a morte. Convinha de fato àquele para quem e por quem tudo existe, e que queria conduzir à glória uma multidão de filhos, levar à consumação,[85] por meio de sofrimentos, o promotor da salvação deles” (Hb 2,9-10). A meu ver, o imaginário cristão é marcado por um paradoxo. Por um lado, temos uma visão da presença de Deus no mundo, na história dos homens, e da necessidade do homem lidar com uma realidade que o transcende, mas que ao mesmo tempo lhe é íntima. Uma realidade diante da qual se sente limitado e, ao mesmo tempo chamado a abraçar o limite, em busca de um encontro criativo e amoroso com a fonte da vida.[86] Por outro lado, temos um Deus transcendente, exigente, que, ao se identificar, no IV século, com a ordem constituída (Edito de Constantino), se torna uma instância superegoica poderosa, que encontrará sua expressão histórica nos sombrios desdobramentos da inquisição e em determinadas leituras teológicas, ainda presentes no imaginário popular.

A visão cristã que emerge deste cenário se relaciona com vários aspectos da angústia até aqui analisados. Em primeiro lugar a angústia é algo inerente à condição humana. Portanto, é fundamental aprender a conviver com ela de uma forma criativa. Em segundo lugar, a angústia se situa no ponto de encontro entre as forças criativas da alma humana (pulsão de vida) e a experiência do limite (pulsão de morte), que redunda no recalque. Finalmente a angústia está ligada ao que, em termos kleinianos, poderíamos descrever como a profunda ambigüidade do objeto do desejo; um objeto percebido, ora, como ameaçador e perseguidor e, ora, como fonte e objeto de amor. Aceitar esta ambigüidade é, mais uma vez, um sinal de maturidade e, a meu ver, um dos objetivos da análise.

Conclusão

Num ensaio que causou furor na França,[87] Elisabeth Roudinesko procura fazer o ponto sobre o papel da Psicanálise no atual contexto cultural, perguntando se o longo e demorado processo analítico ainda tem algum valor para o homem contemporâneo que parece estar muito mais voltado para soluções mágicas e imediatas. Para responder a essa pergunta ela tece algumas considerações sobre a “derrota do sujeito”. Gostaria de concluir este breve ensaio levando em conta as reflexões desta autora, que me parecem de alguma forma pertinentes com o nosso percurso. O que manifesta o sofrimento psíquico, na opinião da autora, hoje seria a depressão,[88] uma síndrome caracterizada pela tristeza, apatia, busca da identidade e culto de si mesmo, em que o homem procura desesperadamente “vencer o vazio do seu desejo”.[89] Inebriado pela liberdade conquistada, sente-se angustiado por não saber como administrá-la. Numa época em que a subjetividade é substituída pela individualidade, o homem sente-se um anônimo, um estranho para si mesmo, irremediavelmente alienado do seu núcleo mais profundo. O conceito de globalização parece ter afastado definitivamente o espaço para as diferenças e as resistências, num modelo de sociedade pasteurizado, onde cada um existe na medida em que se identifica com uma tribo, uma comunidade real ou virtual. O homem contemporâneo é chamado a abraçar os desejos que lhe são impostos pela mídia e pelo próprio contexto cultural em que vive, alienado do seu movimento pulsional interno. Constantemente bombardeado por apelos audiovisuais, o homem contemporâneo parece não conseguir mais entrar em contato com o seu desejo. Tudo lhe é servido numa bandeja, pronto e mastigado e, se recusar se servir, ele estará definitivamente banido de sua comunidade. Ele passará a ser out, pois não há espaço para que ele afirme a sua diferença. É evidente que esta situação alienante acaba causando uma forma sub-reptícia de ódio, que, na opinião de Roudinesko, assume a máscara da dedicação à vítima.[90] Desta forma, a angústia que fingimos exorcizar invade o campo das relações sociais e afetivas e se manifesta no “recurso ao irracional, culto das pequenas diferenças, valorização do vazio e da estupidez”.[91] Um aspecto típico desta sociedade depressiva é a “valorização de uma competitividade baseada unicamente no sucesso material”.[92] Uma das conseqüências, afirma Roudinesko, seria a tendência do homem contemporâneo de recorrer às substâncias químicas ou aos poderes mágicos de terapias esotéricas, ao invés de se confrontar com seus sofrimentos íntimos: “o silêncio passa então a ser preferível à linguagem, fonte de angústia e de vergonha”.[93] Diante deste cenário, podemos dizer com a autora que, “às vésperas do terceiro milênio, a depressão tornou-se a epidemia psíquica das sociedades democráticas”.[94] O sintoma neurótico é tratado hoje como depressão ou estresse. Desta forma, ele é despojado de sua causalidade psíquica oriunda do inconsciente. Recusando-se a encarar o inconsciente, as terapias, sejam elas baseadas na farmacologia ou nas psicoterapias, acabam falhando no seu objetivo, condenando o homem contemporâneo a viver com paliativos.

Eis o desafio: aceitar a angústia como componente inevitável do funcionamento psíquico. O desafio da angústia se põe como necessidade para que o homem contemporâneo consiga viver o limite como ponto de partida para criatividade e não apenas como castração. Um desafio que só se realiza a partir do momento em que ele aceita de entrar em contato com os seus conflitos inconscientes, e, portanto, com toda a poderosa força vital que emana do id, convencido que não há pílula que os resolva e que não há terapia que os alivie. Eludidos de um lado, eles voltam a aparecer teimosamente do outro. Seguir o percurso da angústia, portanto, nos leva a descobrir toda a riqueza da dolorosa condição humana e a viver com coragem o limite como horizonte de descoberta do Outro.

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 [1] B. PASCAL, Pensieri, Mondadori, Milano, 1970, p.219 (a. tradução é minha).

[2] Id., Ibid., p. 220

[3] A rigor, Heidegger não deveria ser considerado um existencialista, pois ele mesmo recusou repetidamente esta denominação.

[4] R. MEZAN, Freud: a trama dos conceitos, Imago, Rio de Janeiro, 1998, p. 306.

[5] Cf. S. FREUD, “Extratos dos documentos dirigidos a Fliess” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. I, Imago, Rio de Janeiro, 1996, pp. 235-241.

[6] Id., Ibid., pp. 237-238.

[7] Id., Ibid., p. 238.

[8] Id., Ibid., p. 238.

[9] Id., Ibid., p. 238.

[10] Id., Ibid., p. 240.

[11] Id., Ibid., p. 240.

[12] Cf. S. FREUD, “Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada neurose de angústia” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. III, Imago, Rio de Janeiro, 1996, pp. 108-113.

[13] Id., Ibid., p. 109.

[14] Id., Ibid., p. 110.

[15] Id., Ibid., p. 110.

[16] Id., Ibid., p. 112.

[17] Cf. Id., Ibid.,, pp. 113-115.

[18] Cf. S. FREUD, “Extratos dos documentos dirigidos a Fliess” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. I, Imago, Rio de Janeiro, 1996, pp. 318-322.

[19] Freud acena já neste texto a teorias que serão retomadas mais tarde em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade,[19] como o fato do desenvolvimento sexual do menino e da menina ser diferente e menciona o abandono do clitóris como fase de desenvolvimento que leva à repugnância sexual, até que seja despertada a zona vaginal.

[20] Id., Ibid., p. 321.

[21] “Decidi, pois, daqui por diante, considerar como fatores separados o que causa a libido e o que causa a angústia. E também abandonei a idéia de explicar a libido como o fator masculino e o recalcamento como o fator feminino” (Id., Ibid., p. 322).

21 Cf. S. FREUD, “Conferências introdutórias sobre psicanálise” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XVI, Imago, Rio de Janeiro, 1996, pp. 393-411.

[23] Id., Ibid., p. 405.

[24] Cf. S. FREUD, “Inibições, sintomas e ansiedade” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XX, Imago, Rio de Janeiro, 1996, pp. 91-167.

[25] Id., Ibid., p. 100.

[26] Id., Ibid., p. 111.

[27] R. MEZAN, Op. Cit., p. 308.

[28] S. FREUD, “Inibições, sintomas e ansiedade” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XX, Imago, Rio de Janeiro, 1996, p. 132.

[29] Id., Ibid., p. 138.

[30] “A transformação final pela qual passa o medo do superego é (…) o medo da morte (ou medo pela vida), que é um medo do superego projetado nos poderes do destino” (Cf. Id., Ibid., p. 138). Talvez Freud tenha preferido não insistir na Pulsão de Morte por estar incomodado pelas reações que a publicação da obra Além do princípio do prazer tinha causado. Melanie Klein retomará o tema e, a partir da Pulsão de Morte, desenvolverá a sua teoria sobre a ansiedade esquizo-paranóide e a ansiedade depressiva.

[31] S. KIERKEGAARD, “Vida e obra “ in Kierkegaard [Coleção Pensadores], Abril Cultural, 1984. p. VII.

[32] Id., Ibid, pp. IX-X.

[33] Texto extraído da obra Aut Aut, citado em VV.AA., Storia del pensiero filosofico, Vol. 3, SEI, Torino, 1982, p. 145 (a tradução é minha).

[34] Trecho extraído da obra A repetição, citado em VV.AA., Storia del pensiero filosofico, Vol. 3, SEI, Torino, 1982, p. 146 (a tradução é minha). Mencionei este texto porque a repetição é um elemento importante na teoria freudiana, no contexto da neurose. Ela se manifesta mediante um retorno da pulsão recalcada, que volta a ser percebida pelo ego, acompanhada pelo sinal da angústia (na neurose obsessiva ela se manifesta de forma disfarçada no sintoma do ritual obsessivo). Neste contexto fica também evidente a ligação da opção ética de Kierkegaard com a estrutura do superego e com o processo do recalque.

[35] S. KIERKEGAARD, Op. Cit.. p. XII.

[36] S. KIERKEGAARD, “O desespero e a doença mortal“ in Kierkegaard [Coleção Pensadores], Abril Cultural, 1984. p. 195.

[37] M. HEIDEGGER, L´être et le temps, Éditions Gallimard, Paris, 1964. As citações são extraídas da versão francesa. A tradução é minha.

[38] Vale a pena observar que Heidegger nunca reconheceu a existência de um hiato entre as duas partes de sua obra.

[39] Para Heidegger a existência humana é o ponto de partida e não o objeto de seu filosofia, neste sentido ele não se considera um existencialista.

[40]M. HEIDEGGER, Op. Cit., p. 227.

[41] Id., Ibid., p. 227.

[42] Na versão francesa angst é traduzido por angoisse (angústia) e sorge por souci (ansiedade, preocupação).

[43] Id., Ibid., p. 228.

[44] Id., Ibid., p. 227.

[45] “O que angustia a angústia é o ser-no-mundo como tal” (Id., Ibid., p. 228).

[46] Id., Ibid., p. 229.

[47] Id., Ibid., p. 233.

[48] Citado em J. SARTRE, “Vida e obra“ in Sartre [Coleção Pensadores], Abril Cultural, 1984. p. X.

[49] J. SARTRE, “O existencialismo é um humanismo“ in Op. Cit., p. 5.

[50] Id., Ibid., p. 6.

[51] Id., Ibid., p. 6.

[52] Id., Ibid., p. 7.

[53] Id., Ibid., p. 7.

[54] Id., Ibid., p. 8.

[55] Id., Ibid., p. 9.

[56] Id., Ibid., p. 9.

[57] Id., Ibid., p. 20.

[58] Vale a pena lembrar que o próprio Freud descarta a idéia do ego estar totalmente entregue aos processos pulsionais: “Muitos autores têm dado grande ênfase à fraqueza do ego em relação ao id e aos nossos elementos racionais em face das forças demoníacas dentro de nós, e exibem forte tendência para transformarem o que eu disse em pedra angular de uma Weltanschauung psicanalítica. Contudo, por certo o psicanalista, com seus conhecimentos da forma como a repressão atua, deve, justamente ele, ser impedido de adotar um ponto de vista tão extremo e unilateral.” (S. FREUD, “Inibições, sintomas e ansiedade” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XX, Imago, Rio de Janeiro, 1996, p. 99).

[59] A. COMTE-SPONVILLE, Bom dia, angústia!, Martins Fontes, São Paulo, 1977, p. 14. Podemos entender a ausência de “objeto real”, no sentido que o perigo ao qual a angústia aponta de fato não é externo, real, mas é interno, inconsciente.

[60] Heidegger, como vimos, o nega a partir de sua visão do ser como nada. Na sua perspectiva o nada não assusta, simplesmente angustia.

[61] Comentando a morte prematura do seu pai Sartre escreve: “Foi um mal, foi um bem? Não sei; mas subscrevo de bom grado o veredicto de um eminente psicanalista: não tenho superego”. (Citado em J. SARTRE, Op. Cit., p. VII).

[62] O recalque é um processo inconsciente, a supressão um processo consciente.

[63].A. COMTE-SPONVILLE, Op. Cit., p. 11.

[64] Id., Ibid., p. 17.

[65] Para a elaboração destas considerações tive a ajuda do biblista e amigo Ivo Storniolo, que me ofereceu dicas muito valiosas sobre a etimologia das palavras, a exegese dos textos referentes à morte de Cristo e os paralelos entre a visão teológica de Cristo e o mito de Héracles.

[66] R. LÓPEZ-PEDRAZA, Ansiedade cultural, Paulus, São Paulo, 1997.

[67] “Eu diria que a psique ocidental sempre viveu a ansiedade provocada pelo conflito constante entre as mitologias pagãs (…) e o Deus único e carente de imagem do monoteísmo” (Id., Ibid., p. 40)

[68] “O conceito de Si-mesmo de Jung foi sua maneira de conter o uno e os muitos” (Id., Ibid., p. 64).

[69] Id., Ibid., p. 45.

[70] Id., Ibid., p. 46.

[71] “A mudança do ponto de vista do ego para uma consciência que abarque tanto o monoteísmo quanto o politeísmo é, para mim, de importância primordial” (Id., Ibid., p. 41). Não vamos aqui entrar no mérito sobre a questão polêmica do conceito de inconsciente e inconsciente coletivo e de arquétipo, que, a meu ver, têm alguma ligação com os traços mnêmicos arcaicos (primitivos) aos quais Freud se refere.

[72] Id., Ibid., p. 46.

[73] Cf. Est Gr. A,7; 1Mc 3,31.

[74] Cf. por exemplo Gn 32,8; 1Sm, 30,6; 2Sm, 24,14; 1Rs, 1,29; 2Rs 19,3; Is 5,30; 8,22; 8,23; 30,6; Lc 2,48; 21,25; At 7,11; Rm 2,9; 8,35.

[75] Cf. por exemplo Gn 16,11.

[76] Cf. por exemplo 1Sm 28,15; Sl 22(21), Mt 26,37, Mc 14,33.

[77] Sobre este tema cf. o meu ensaio “Pulsão freudiana:</SPAN> <SPAN STYLE=” Font-Size : 16pt”>Considerações extraídas da filosofia clássica e da visão bíblica”.

[78] Cf. Mc 15,34; Mt 27,46.

[79] Sobre a questão da possibilidade e do sentido do sofrimento divino, a Teologia dos anos 60 e 70 se debruçou com afinco. A tentativa resultou em importantes obras (Moltmann, Kitamori, Küng, são alguns dos autores que escreveram sobre o tema). A Teologia da Morte de Deus é uma expressão típica desta reflexão.

[80] Cf. Lc 23,44.

[81] Em Hb 9,8-13 podemos encontrar uma paralelo entre o antigo e o novo santuário: o primeiro prefigurando uma maneira imperfeita e parcial do homem se relacionar com a fonte da vida, que somente em Cristo se torna acessível de alguma forma à consciência humana (consciência é a palavra usada pela TEB).

[82] É curioso observar um paralelo entre o itinerário trágico do homem-deus cristão e o mito de Héracles, que conflui no arquétipo do Sotér. Em ambos os casos de fato encontramos um nascimento que envolve um deus e uma mulher humana, um período da existência marcado por façanhas (milagres), um período de decadência que culmina com a morte ignominiosa e, finalmente, a coroação numa dimensão transcendente.

[83] Cf. Jo 20,27

[84] Cf. Jo 20,26

[85] Como é observado em nota da versão portuguesa da TEB, o verbo grego usado é teleioun, que exprime “o mistério da glorificação de Cristo (…) e do total cumprimento da vocação do homem”.

[86] Uma visão que é particularmente presente na mística e na ascética cristã, principalmente nas obras de Teresa de Ávila e de João da Cruz.

[87] E. ROUDINESKO, Por que a Psicanálise, Zahar, Rio de Janeiro, 1999.

[88] Sobre o tema cf. P. FÉDIDA, Depressão, Escuta, 1999.

[89] E. ROUDINESKO, Op. Cit., p. 13

[90] Id., Ibid., p. 16

[91] Id., Ibid., p. 17

[92] Id., Ibid., p. 30

[93] Id., Ibid., p. 30

[94] Id., Ibid., p. 17

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