Quantas vezes, ao acordarmos, o céu parece nublado. Aliás, nesses dias sequer olhamos para o céu. Pouco importa se lá fora o sol brilha, dentro de nós, nuvens pesadas tornam cinzento tudo o que vemos ao nosso redor. Uma série de interlocutores internos parece estar a dialogar conosco.
— Não adianta, não tem mais jeito — diz um.
— Tanto faz, vamos levando — diz outro.
— Por que, justo comigo? — grita um terceiro.
— O que eu fiz para merecer isso? — se interroga o quinto.
Cada um de nós tem o seu próprio coro de interlocutores e o seu repertório de queixas. No entanto, o efeito dessas vozes é o mesmo. A depressão toma conta de nós. A angústia provoca um aperto em nosso peito, nossa respiração é afetada. Uma estranha sensação de ansiedade se transmite de forma difusa a todo o nosso corpo. Um sentimento profundo de solidão torna vazios e sem sentido nossos encontros com o outro. Ficamos sem apetite, ou então com uma fome compulsiva, um desejo de preencher com comida o buraco negro que se instalou dentro de nós, sugando nossas energias vitais. Alguns tentam fugir desse estado saindo em busca de algo que possa preencher o seu vazio interior. Compras, uma relação sexual sem envolvimento, uma viagem, ou, na pior das hipóteses, álcool ou drogas.
Fechou-se o ciclo mortal. A pulsão de morte tomou conta de nós. O único sentimento que parece realmente nos mobilizar é uma raiva profunda, misturada a uma estranha sensação de culpa. Procuramos então desviar esse sentimento e canalizar a raiva buscando algum culpado pelas nossas desgraças. Nossas imagens recalcadas, nossos fantasmas internos vão em busca de alguém em quem possam se espelhar, para projetar nele o nosso ódio e a nossa raiva. Às vezes, nem isso é possível e a raiva volta para dentro de nós, sob forma de auto-sabotagem. É o momento em que nos metemos naquela relação que, já de entrada, sabemos nos trará apenas problemas e sofrimento. É o momento ideal para fazer aquele negócio que só vai nos trazer prejuízo. É o momento em que nos predispomos internamente a ser vítimas de um assalto. É o momento em que, no nosso trabalho, cometemos aquele erro que vai nos custar o emprego ou a possibilidade de avançar em nossa carreira.
O que torna mais terrível essa experiência psíquica é a sua tendência a se tornar cada vez mais freqüente, mais intensa. Como fugir de suas garras afiadas? Como reverter a pulsão de morte? O caminho que nos leva à esperança, é uma trilha íngreme e estreita. Exige que nos apeguemos ao instinto vital que, apesar de tudo, ainda está presente em nós.
Um primeiro passo é acolher nossa dor. Não tentar fugir dela. A experiência da dor é o que nos caracteriza como seres humanos. Na estátua da “Pietà” Miguelangelo a imortalizou na imagem da mãe desolada pela dor da perda do seu filho, do seu Deus e portanto de sua esperança.”Stabat mater dolorosa” reza um antigo hino cristão. Nesse “estar” encerra-se uma experiência profunda de humanidade. Saber “estar” em nossa dor, saber contê-la, recebê-la, habitá-la. Saber acolher a criança angustiada que está em nós, precisando de alguém que a receba, que abra os braços, que a tome no colo e permita que ela possa chorar. Sim, simplesmente chorar. Poder chorar é uma grande dádiva nesses momentos. Nós gostaríamos que outros fizessem isso, que nos oferecessem um colo para chorar, mas nem sempre isso acontece, nem sempre é possível. Cabe a nós dar o primeiro passo. Acolher nossa dor.
Ao cuidar de nossa criança interior chorosa, a dor já recebe uma primeira significação. Imagens, lembranças, sentimentos profundos tomam conta de nós. Percebemos então que a que estamos vivendo não é uma dor isolada. Ela se insere numa série de afetos internos penosos que atravessam nossas feridas psíquicas. Trata-se de pequenos/grandes momentos de dor, que provavelmente passaram desapercebidos aos olhos de quem cuidava de nós na nossa infância, mas que foram para o nosso psiquismo grandes abismos de angústia, nos quais nos sentimos precipitar. Talvez ninguém entenda por que estamos tão chateados e deprimidos por algo tão insignificante –aos olhos dos outros– que aconteceu em nossa vida presente. Mas isso é porque ninguém pode saber os abismos que se abriram sob os nossos pés, por trás dos fatos “insignificantes”. Portanto, não devemos desprezar nossa dor, e tampouco a dor de qualquer ser humano, por mais estúpida que pareça.
O segundo passo, uma vez acolhida a nossa dor, é separar nossa dor atual da cadeia de sentimentos aflitivos à qual ela ficou ligada. O nosso presente contém o passado, mas não é o passado. É importante que consigamos habitar o nosso presente. Perceber o que temos construído, olhar para a realidade que nos rodeia e acolher o que está ao nosso alcance. Mesmo o que foi materialmente perdido pertence a nós. Pois faz parte de nossa história. Um relacionamento, um casamento, os filhos, realizações na área profissional, tudo isso pode não estar fisicamente presente, mas é algo que de alguma forma ainda nos pertence. Como diz a lei da física, nada se cria e nada se destrói, tudo se transforma.
O terceiro passo é acolher e habitar o que, nesse momento, apesar de tudo nos traz vida e alegria… Não precisa ser algo grande, pode ser algo muito simples. Um raio de sol, alguém que nos cumprimenta, o sorriso de uma criança, algo que está ao nosso alcance e que pode nos dar um pouco de prazer e de alívio. Reverter o sentimento de ser lesado por um sentimento de gratidão é um passo decisivo em direção à esperança… As energias parecem refluir dentro de nós, na medida em que a pulsão de morte regride e a nossa libido nos invade novamente. Sim agora sabemos que, apesar de tudo, podemos dar vida a algo dentro e fora de nós. Não precisa ser algo grande, pode ser algo pequeno, algo simples: um sorriso, um gesto de atenção, cuidar de algo que nos foi confiado. Winnicott apontava para a importância do ato de brincar. Saber brincar é muito importante. Brincar a vida é uma arte.
O segredo é habitar o nosso presente, acolhendo aos poucos nosso passado, abrindo as portas da esperança para o nosso futuro. Isto nos permite gritar “la vita é bella”; transformar um campo de concentração numa experiência cheia de vida e de amor. Estamos juntos nessa caminhada, pois viver é uma arte!