Ensaio sobre a cegueira
Refletindo sobre as sensações que despertou em mim o último processo eleitoral surgiu espontânea na minha mente a associação com o romance ‘Ensaio sobre a cegueira’ do escritor Saramago, mais tarde transformado no filme homônimo.
Perguntei a mim mesmo por que a palavra cegueira se impôs aos meus pensamentos. O que isso teria a ver com as eleições e com a avalanche de comentários que povoaram as páginas das redes sociais durante e depois da campanha? A sensação foi de uma progressiva perda da “visão”, que acometeu de forma súbita, como no romance, uma massa crescente de pessoas. Um véu escuro caiu sobre os olhos dos que se empenharam nas duas frentes da campanha do segundo turno. A capacidade de enxergar a realidade com senso crítico ficou aos poucos afetada. Os candidatos e seus respectivos partidos se tornaram rapidamente sombras de objetos “idealizados”. Nada cega mais que a idealização.
A radicalização da discussão raivosa sobre quem era “o demônio”, levou naturalmente a criar como contrapartida o “anjo”. Não importa que lado alguém escolhesse, a visão da realidade parecia definitivamente perdida e, às apalpadelas, com a hábil ajuda dos marqueteiros, os eleitores puderam construir em sua mente uma imagem fantasmática do seu candidato e do respectivo adversário. Rapidamente a epidemia se espalhou. Os cegos se isolaram no reduto das redes sociais que rapidamente assumiram o aspecto conturbado e deteriorado dos cenários sombrios descritos no livro de Saramago habilmente recriados pelo filme. A violência se apoderou de pessoas habitualmente educadas e pacíficas. Agressões, estupros verbais e reações paranoicas tomaram conta dos dois lados.
A esperança é que, como no romance, aos poucos possamos recuperar a visão e ver os montes de lixo fedorento que nos rodeiam por toda parte e perceber que a realidade vai exigir a coragem de olhar para os escombros, reconhecer no meio deles os fantasmas de antigas ideologias que nunca morreram e perceber que nenhuma delas nos levará a identificar onde está o perigo real e o caminho da reconstrução. Agora é a hora do choque de realidade, ele virá, que nós queiramos ou não, e os cenários que se abrem não são certamente atrativos.