A unificação psiique-corpo em Winnicott

(C) ODÉCIO BARNABÉ JUN

SUMÁRIO

1- INTRODUÇÃO.. 4

2- O CONCEITO DE DEPENDÊNCIA ABSOLUTA………………………………………………………8

3- O CONCEITO DE INTERLIGAÇÃO DO SOMA E PSIQUE…………………………………….16

3.1 – Holding – Handling e Continência…………………………………………………………………………17

3.2 – Psique-Soma e a Mente……………………………………………………………………………………….18

3.3 – Conceito Central de Elaboração Imaginativa………………………………………………………….20

3.4 – Os Estados Tranquilos e Excitados do Bebê…………………………………………………………..24

4- CONCLUSÃO…………………………………………………………………………………………………………30

5- REFERÊNCIAS……………………………………………………………………………………………………….32

1-INTRODUÇÃO

Este texto pretende abordar de maneira sucinta o conceito do processo de integração da psique no corpo, denominado – personalização -, que ocorre na fase da Dependência Absoluta, segundo o embasamento teórico psicanalítico apresentado por D. W. Winnicott e, concomitantemente, discutir o entendimento da teoria do amadurecimento. Propõe-se mostrar que o autor traz contribuições que descrevem de novas formas os conceitos da psicanálise clássica, de modo a instituir um outro olhar sobre a disposição psicoafetiva do indivíduo. Dessa forma, se afastando da dualidade cartesiana mente-corpo, Winnicott problematiza outro aspecto dessa elaboração, formulando, então, o conceito de que a existência é peremptoriamente psicossomática, ou seja, ele distingue a elaboração imaginativa das funções corporais e, com isso, nos mostra uma série de experiências, vividas pelo infante, que têm como base a corporeidade.

Essa teorização teve origem em construções baseadas em fatos clínicos, desenvolvidas ao longo de anos de experiências com pesquisas psicanalíticas. O alojamento da psique no corpo depende de inúmeras tarefas que o bebê deve atravessar durante o desenvolvimento emocional primitivo conseguindo, logo, o grau de pessoa total, desde que muito ajudado pelo ambiente, que deve ser ajustado às exigências do bebê, feito que assegura ao sujeito uma experiência visceralmente psicossomática.

Esse movimento ocorre de forma gradual no percurso do desenvolvimento emocional primitivo. A fortificação da psique amplifica a evolução da criança, pois é esse movimento que dá garantia à continuidade de sertente, em consequência do cuidado saudável da mãe com base nas necessidades do bebê. O percurso do início de vida até o apoderamento do estado unitário, possibilita o lactente formar uma unidade, ter inclusões e afinidades bem como manter uma sensação de eu-sou.

Uma tarefa subsidiária do desenvolvimento infantil é o abrigo psicossomático (deixando de lado, por ora, o intelecto). Grande parte do cuidado físico dedicado à criança – segurá-la, banhá-la, etc – destina-se a facilitar a obtenção, pela criança, de um psique-soma que viva e trabalhe em harmonia consigo mesmo. (WINNICOTT, 2011, p.12)

O soma é uma anatomia viva: respira, teN fome e necessidades, fica excitado, digere, é compassivo às alterações do ambiente, se expõe; é um corpo vivo único, sofisticadamente elaborado e habitado pelo bebê, se alcançar esse estado. Já a psique, é o resultado da ação de elaborar plasticamente o corpo intenso e de apropriar-se dos membros, das sensações, das funções, dos sentimentos, das percepções sensório-motoras. Todo esse movimento dá sentido aos afetos sentidos no corpo. Este caminho experiencial flui de maneira saudável, a mente se instaura nas bordas da colaboração psique-soma, portanto, esse caminho empresta recursos a mais para o bebê tomar como norte seu processo existencial, que já apontou logo no início de sua vida. O processo de alojamento é entendido, indubitavelmente, como um modo de composição psicossomático.

            De acordo com Winnicott, o bebê vive em seu corpo e passa a erigir o si mesmo no espelho do funcionamento corporal, além e da sua realidade psíquica, sendo isso, parte da elaboração imaginativa das tarefas do funcionamento do corpo. Com base nisso, percebe-se que a experiência de se sentir no próprio corpo, saber usá-lo e viver as funções corporais, é o estado nuclear da vida.

             A “teoria do amadurecimento”, fruto do pensamento de uma continuidade do desenvolvimento emocional do bebê — tópico sobre o qual o autor se debruçou em sua obra —, acarretou contribuições diferentes para a teoria psicanalítica. Isso porque, “A ênfase dessa teoria recai sobre os estágios iniciais, pois é nesse período que estão sendo constituídas as bases da personalidade e da saúde psíquica” (Dias, 2017, p. 1). Assim, a teoria do amadurecimento mergulha profundamente nas etapas iniciais, demonstrando as diversas aquisições, tarefas e até mesmo as dificuldades — estas como processo importante de travessia dessas fases.

Ressalta-se, nesse ponto, uma linha temporal na qual Winnicott postula a noção de criatividade originária, em cuja essência salvaguarda a ideia de predisposição inata de todo ser humano ao amadurecimento, bem como uma faculdade criativa de se estar em relação com o mundo. No início do desenvolvimento, esse movimento é tido como atividade criativa primária.

            Dentro dessa perspectiva, o bebê vem ao mundo totalmente indefeso, como algo não-integrado. Entretanto, ele também nasce com uma forte tendência para o seu desenvolvimento. Então, o trabalho do ambiente é dar suporte harmônico para que as condições inatas do infante alcancem o seu potencial de desenvolvimento e de amadurecimento. Em outros termos, é preciso que a mãe perceba a necessidade do bebê e a supra dentro do tempo adequado e de acordo com as necessidades estabelecidas pela criança.

            O ambiente favorece a construção gradativa da identidade unitária, “todo bebê deve poder alcançar, incluídas aí a capacidade de relacionar-se com o mundo e com os objetos externos, e de estabelecer relacionamentos interpessoais”; esse processo serve, então, “de guia prático para a compreensão dos fenômenos da saúde, assim como para a detecção de dificuldades emocionais.”[1]

            Caso o ambiente não esteja contribuindo de forma satisfatoriamente boa, como será essa integração? Haverá um meio da psique-soma serem integrados?

            Quando, então, o ambiente é adaptado às necessidades vitais do bebê, um gradual progresso emocional primitivo faz com que a existência psicossomática passe a existir. Ao contrário, ou seja, quando o ambiente falha, lamentavelmente, a unidade psique-soma, não estará ao alcance do bebê para ser acomodada.

            Serão feitos alguns recortes do tema, os quais deveram ser apresentados para contribuir no desenvolvimento do mesmo.

            Item I: O conceito de Dependência Absoluta – fase inicial das mais delicadas e sutis para o desenvolvimento saudável do bebê -, cujo ambiente provedor deverá suprir as necessidades do lactente para um crescimento proveitoso. Se a necessidade do lactente for suprida de maneira satisfatória pela mãe, o bebê poderá ter a experiência de reunir em seu aprendizado, facilitando sua memória afetiva e seu desenvolvimento emocional. Também será visto que este desenvolvimento terá sequência apenas se não houver intrusões por parte do ambiente, o qual, necessariamente, deverá suprir condições saudáveis para o bebê; caso contrário, através das intrusões advindas dos descuidados da mãe, o infante vai ter reações, as quais os levaram para uma situação de muita angústia, onde a construção do ego ficará danificada.

            Ainda nesse percurso, dar-se-á uma noção da integração no tempo e no espaço, pois não haverá nenhum sentido de realidade possível, fora de um tempo e um espaço.  A noção de criatividade primária, que leva em consideração a elucidação do estágio inicial, para que o bebê possa efetivar, no concreto, sua potencialidade criativa, deve vir acompanhados de cuidados suficientemente adequados à necessidade do bebê.

            Na continuidade, item II: relacionar-se-á o conceito da interligação do soma e psique, que seriam as experiências corporais, dadas como instinto, as gesticulações do corpo e a devoção de cuidados físicos maternos – holding, handling -, que poderão harmonizar a elaboração imaginativa do corpo, semente que produzirá a psique. O aspecto vivaz do corpo abarca a potencialidade dos instintos como propulsores biológicos que surgem e desaparecem na vida do bebê, direcionando a conjugação de toda a vida, quanto a relação indivíduo-ambiente.

Além disso, os estados excitados e tranquilos do bebê, que seriam apontados como: primeiro, sendo os movimentos indiferenciados que se faz em direção ao mundo externo: ir em direção ao seio, apertar, sugar, etc., e, segundo, onde consegue adormecer, relaxar, ou seja, entra no seu estado sereno. Essas condições vêm de duas fontes: a instintual e a motilidade. Tanto instinto como a ação motora são expressões do ‘estar vivo’, e o relaxamento é quando o bebê abandona o mundo e recolhe-se em solidão, indo para a quietude do mundo subjetivo; no adulto, é onde a arte e a cultura se manifestam. Caso não seja possível o ambiente doar cuidados saudáveis para o processo de amadurecimento do lactente – entenda-se aqui, satisfazer sua necessidade -, essa unificação será apartada.

            Para que se entenda essa noção como um aspecto de grande importância agregado ao corpo, mundo interno e externo fazem parte dessa mesma constituição. Acomodando-se paulatinamente no soma, e podendo entrar em sintonia com o próprio através do acúmulo de suas experiências. Esta mesma experiência que aviva o conjunto de sentimento do eu e perpassa pela habilidade inventiva e de liberdade, traz para perto a unidade do corpo, pois esse caminho é fruto da elaboração imaginativa das funções corpóreas.  

            Winnicott trouxe novos conceitos para o campo da psicanálise, e a noção da psique fazer morada no corpo foi uma das mais inusitadas. Sem dúvida, o conceito de personalização, que faz jus a essa conquista, demonstra a diferença de sua obra em relação a outras vertentes psicanalíticas, que dão como certa a localização da psique no corpo. Toda sua obra é voltada a uma articulação e apreensão possível da noção de continuidade do ser, ser esse que desempenha um contínuo percurso de encontrar uma vida digna de ser vivida. Daremos, a partir de agora, abertura, à construção do texto.

2- DEPENDÊNCIA ABSOLUTA

                A dependência absoluta do bebê, está intrinsicamente ligada ao ambiente; desta forma, posto que ele vive no seu tempo de não-integração, o superar dessa situação só será viabilizado se houver a adequação absoluta da “mãe suficientemente boa”. Não há, portanto, como especificar um bebê sem que sejam abarcados e ajustados os cuidados que ele recebe.

                Segundo Winnicott em O Brincar e a Realidade (1975, p.153), “nas primeiras fases do desenvolvimento emocional do bebê humano, um papel vital é desempenhado pelo ambiente, que, de fato, o bebê ainda não separou de si mesmo”. Nesse contexto, não há dois indivíduos, e sim “uma relação sui generis que pode ser chamada de dois-em-um” (DIAS, 2017, p.110).

            Nesse início, pode-se dizer que o ambiente é a mãe. Os cuidados ofertados e o modo de ser em sua totalidade de cuidadora privilegiam esse período. Por isso, esse processo pode ser pensado como se realizando a partir de um início que poderia ser nomeado de dupla dependência: mãe e bebê são apenas um.

                Algo se inicia nessa fase, a primeira, propriamente dita, de um mundo que poderá se descortinar à frente do lactente. Deveras importante, é ver que Winnicott traz um novo conceito da “teoria do amadurecimento”, que até esse momento a psicanálise clássica[2] não tinha explorado de forma clara e objetiva.  O autor aponta que a possibilidade de ser não é pré-determinada, mas sim um trabalho de conquista que aos poucos se desenvolve, dentro de condições ambientais saudáveis, indo em direção a um possível ganho de maturidade de modo paulatino.

            Desde o início o bebê começa a existir, mas ele ainda não sabe disso. De fato, é na continuidade do ir existindo que o sentido de self vai se definindo. Um sentimento autêntico vai se tornando real, um sentimento de ser vivo se apodera do indivíduo. Assim, a parte interna do bebê “pode finalmente vir a se estabelecer como uma característica da personalidade do indivíduo.” (WINNICOTT, 1967/2011, p.5)

A dependência absoluta do bebê, está baseada e intrinsicamente ligada ao ambiente, desta forma, posto que o bebê vive no seu tempo de não-integração, esta situação só será possível devido à adequação da ‘mãe suficientemente boa’. Não há como especificar um bebê sem que sejam abarcados e ajustados os cuidados que o mesmo recebe. Essa é uma tarefa que após certo tempo, vai se consolidando e levando o bebê ao estado de integração, que no atravessar desse período, vai compondo as tarefas do desenvolvimento. O resultado “leva o bebê a uma categoria unitária, ao pronome pessoal “eu”, ao número um; isso torna possível o EU SOU, que dá sentido ao EU FAÇO.” [3]

A tendência ao amadurecimento, em partes, é transmitida. Vem de um modo todo complexo, principalmente nos primórdios da vida do bebê, que depende em absoluto do suprimento ambiental adequado. Ou seja, esse ambiente empresta elementos, facilitando as tendências pessoais herdadas, e ajuda o desenvolvimento a acontecer de acordo com elas.

A criança depende vitalmente do ambiente, isto é, – da mãe -, e todo seu percurso de progresso e sua vida só podem ser pensados levando em consideração a união, ao todo formado pelo cuidado intenso fornecido por essa figura materna.

O termo “integração”, para Winnicott, é tanto usado para apontar a inata disposição à maturidade, caminhando para o sentido unitário, como para outras integrações inacabadas que seguirão acontecendo ao longo da jornada, a partir do estado de não-integração. A propósito, não é concebível o sentido de uma realidade aceitável – nem do corpo, nem do mundo, nem do si-mesmo – exceto dentro do espaço e do tempo. Assim, “Não há indivíduo se não existir uma memória de si, aquilo que mantém a identidade em meio às transformações” (DIAS, 2017, p. 173). Não poderá haver, nesse sentido, encontro de objetos se o mundo não puder ser descoberto pelo bebê, se não houver um si-próprio para encontrar esse mundo. É no início da vida do infante que o desenvolvimento de integração tem como base o tempo e a espacialização. Em função disso, “a inclinação principal no pleito maturativo está inclusa nos vários significados da palavra integração. A integração no tempo se acrescenta ao que poderia ser designada de integração no espaço” (WINNICCOTT, 1962a/2007, p.58).

Não se trata de uma inserção do bebê no mundo externo, uma vez que o infante não está maduro para o sentido da realidade compartilhada; é, sim, antes, um olhar para uma espécie de continuidade de ir sendo. Isso se dá pois o bebê não faz ideia da existência permanente da mãe, mas é tocado pelas impressões da presença dessa cuidadora. “Para preservar a continuidade de ser e manter vivo o mundo subjetivo, o bebê precisa ser permanentemente assegurado pela presença da mãe” (DIAS, 2017, p.173).

Certamente, Winnicott entende no que se refere ao impulso, que necessita haver uma continuidade para que o bebê possa ser assegurado pela presença da mãe que continue a sustentar o lactente. Assim,

O impulso criativo desaparece a menos que seja correspondido pela realidade externa (“realizado”). Toda criança tem que criar o mundo, mas isso só é possível se, pouco a pouco, o mundo for se apresentando nos momentos de atividade criativa da criança. A criança procura algo e encontra o seio, e criou-se o seio (WINNICCOTT, 1931a/2005, p.16).

Dessa maneira, Winnicott pontua que, pela extrema dependência emocional da criança, seu desenvolvimento não pode ser estudado em separado pois, indivíduo é tido como um modelo no tempo da natureza humana e, é ímpar que “o desenvolvimento emocional nos primeiros meses de vida lança as fundações mesmas da saúde mental do ser humano.” [4] Essa proposta carrega uma das conjecturas nodais da teoria do amadurecimento: a natureza humana precisa do tempo para se desenvolver, ou seja, é prolongada pelo tempo, a fim de que, possa haver uma continuidade de ser e receber atenciosamente o cuidado do ambiente. Assim, para o autor, “o ser humano é uma amostra-no-tempo da natureza humana” (WINNICOTT, 1990, p.29). Esse deslocamento, que é edificado de forma pessoal e que, também, é fomentado nos estágios iniciais do amadurecimento, vai ao encontro, através da vida, com a certeza do morrer. Nesse ponto fica registrado o último passo da saúde do ser humano: estar vivo de forma saudável para poder, então, morrer.

Dando como partida o nascimento propriamente dito, e entendendo que o nascimento ocorreu normalmente, emprestando a possibilidade ao bebê fazer a experiência do prosseguir sendo, é colocado, de agora em diante, sua dependência incondicional nas mãos de sua mãe.

No espaço aproveitado pela genitora, ela deverá ter uma certa sensibilidade de ofertar experiências na criança, fazendo com que o bebê venha alcançar um alto grau de confiança na mãe e, aproveite os ganhos vitais gerados por esse contato, visto que, “ela – mãe – não vai faltar quando a criança dela tiver necessidade” (WINNICOTT, 2016, p. 20).

Nessa sequência de fases e continuidade, é visto o percurso, no sentido Winnicottiano, da dupla dependência. Esse caminho mostra como essa tendência não é inerente à criança para ser desenvolvida, mas sim, configura um crescimento que só pode advir “se se processar numa outra pessoa uma adaptação muito terna às necessidades da criança” (WINNICOTT, 1931a/ 2005, p. 6).

Por essa razão, o autor entende que a mãe é a mais importante e a mais classificada a empregar essa sensível tarefa, que deve ser constante às necessidades do bebê. Sendo, então, a mais solicitada, certamente, é a que tem maior habilidade de entregar-se de forma espontânea aos cuidados da criação do filho.

É nesse período, da dependência absoluta, que a coalizão entre o corpo e a psique, se inicia. Começa, então, de forma paulatina, uma série de situações iniciais em que a psique ainda não encontrou o porto seguro, ou seja, não fez seu alojamento no corpo e nem está, de certa forma, conectada à vida do corpo.[5] Todo esse processo está amarrado  em um nível aceitável de adaptação, ao que é mais importante às necessidades do bebê o qual ainda está em uma fase rudimentar de ser, enquanto que, inserido na continuidade de ser e no seguimento de estar inserido no tempo, passa a existir, “um simples estado do ser, e uma consciência (awareness) que faz o bebê ir sendo em sua maneira plena de ser” (WINNICOTT, 1990, p. 157). Indubitavelmente, portanto, “ainda não pode haver afirmação de uma relação forte entre psique e soma”.[6]

Além disso, Winnicott aponta para um momento de caos que pode ser que aconteça, e, através dessas interrupções, o bebê deixa de ter uma continuidade de ser, aparecendo, nesse caso, ações reativas do ser que, em especial, retiram-no de seu estado de seguir sendo e colocam-no junto a um estado de angústia impensável, como um cair em um abismo sem fundo, o que tira o lactente de sua confortável e segura posição de relaxamento.

O comportamento reativo desmonta a continuidade de ser do bebê, em virtude de não estabelecer afinidade alguma com o seu procedimento vital. O que parece é que o infante não faz uma experiência de integração, não tem experiência alguma; nada é acrescentado ao seu desenvolvimento, a não ser, ansiedades e angústias terríveis, ao estar afastado da continuidade de ser e dos cuidados maternos, o que possibilita esse processo de cisão. Tem-se que “A falha materna provoca fases de reação à intrusão e as reações interrompem o ‘continuar a ser’ do bebê. O excesso de reações não provoca frustração, mas uma ameaça de aniquilação”. Dessa forma, se este estado de ir sendo, de forma tranquila, for alterado constantemente, o bebê é levado “a ter ansiedades muitíssimo primitiva, muito anterior a qualquer ansiedade que inclua a palavra ‘morte’ em sua descrição” (WINNICCOTT, 1956/2000, p. 403). Assim, pode dizer que o bebê que reage às intrusões é um bebê que não está sendo, não pode ser.

Nesse estado de quebra, como salienta o autor, pode haver uma recuperação básica da linha do ser por meio da “recuperação que ocorre através de uma revivência da continuidade”, apoiada em experiências pretéritas do seguimento do ser. Ainda assim, “ocorre que devido às leis elementares da economia, uma quantidade de caos passa a fazer parte, de forma natural, da constituição do indivíduo” [7].

Posto isso, também é fato para Winnicott que os estados de defesa usados pelo bebê não são excessivamente caóticos, se não forem frequentes, pois que não existe ordem interna. Sem dúvida, “ao que lá está, chamamos de não-integração”, eventualmente, isso acontece relacionado à integração, “e um retorno ao caos é denominado de desintegração” (WINNICOTT, 1990, p. 158).

Inicialmente, ou seja, na sequência desse amadurecer, nos primórdios do ser, não existe uma realidade objetivamente reconhecida, como já mencionado, posto que o lactente não pode ser olhado em um modo de individualidade, sendo essa travessia vista, portanto, como dois-em-um, uma extensão do próprio ambiente, a saber: a mãe.

Esta é a sequência, da própria natureza humana, que o autor entende que impulsiona o lactente para o amadurecimento. Vê-se que essa disposição, é um tanto angariada. Isso porque, sobretudo nos primórdios, o bebê é dependente da provisão de um meio razoavelmente adequado, o qual deve conduzir o indivíduo ao caminho do amadurecer emocional e, assim, compor um crescimento pautado na relação hereditariedade-ambiente.

O reconhecimento da experiência humana da solidão é, deveras, significativo, pois, antes de nascer, o bebê está envolvido em um total estado constitucional de solitude.

A proposição de uma condição deste tipo envolve um paradoxo. No princípio há uma solidão essencial. Ao mesmo tempo, tal solidão somente pode existir em condições de dependência máxima. Aqui, neste início, a continuidade do ser do novo indivíduo é destituída de qualquer conhecimento sobre a existência do ambiente e do amor nele contido, sendo este o nome que damos (nesse estágio) à adaptação ativa de uma espécie e dimensões tais, que a continuidade do ser não é perturbada por razões contra a intrusão. (WINNICOTT, 1990, p. 154)

Dessa forma, Winnicott realça o lugar da solidão essencial. O estudioso confere conotação ímpar a esse elemento no início da vida do bebê, isto é, a partir do nascimento, pois é nesse momento que a criança sai de uma profunda imersão no interior da mãe. Nunca mais essa experiência da solidão essencial se fará presente. Ademais, é essa mesma situação original que fará com que o indivíduo possa, no decorrer da vida, ter a capacidade de experimentar o estado de estar consigo mesmo e podendo retornar ao estado original para ser alimentado e, concomitantemente, para lidar com situações de vida, mesmo não o sabendo desse retorno, que é inconsciente. Assim, “com exceção do próprio início, não haverá jamais uma reprodução exata desta solidão fundamental e inerente” [8]

No texto, – Os estados iniciais – (1990), Winnicott fornece um esquema da influência ambiental, a qual exerce uma função importantíssima desde os primórdios da vida do bebê. Sem dúvida, o estado de ser no bebê, (tido como normal), faz jus somente a ele, e, seguindo a diante, essa assiduidade, significa saúde.

O exemplo que é fornecido pelo pediatra e psicanalista inglês é o de que existe o isolamento absoluto do indivíduo, partindo de uma unidade original (conjunto ambiente-indivíduo). A adaptação ativa, seria, para Winnicott, quase perfeita, posto que o bebê faz seu movimento – talvez, o movimento da espinha ou dos pés, dentro do útero – descobrindo o espaço. Isso se direciona a um modelo de relacionamento, que é entendido como saudável.

Agora, quando esse espaço é invadido, está ocorrendo uma intrusão. Ou seja, essa intrusão desfaz todo um estado tranquilo de ser do bebê. Ele vai ter que reagir, ademais, não faz relação com o processo de ir sendo de forma tranquila e relaxada, no qual o bebê pode saborear e ir descobrindo a vida subjetiva.  O acúmulo desse padrão invasivo desenvolve um padrão de relacionamento diferente, no qual o indivíduo faz a experiência dessas invasões serem reais, isto é, elas são sentidas como reais, e a reação à intrusão [9] é sentida como um não viver autêntico, mas que pode ser resgatada – a vida real -, com o retorno ao isolamento, à quietude. Inegavelmente,

A influência ambiental pode iniciar-se numa etapa muitíssimo precoce, determinando se a pessoa, ao buscar uma confirmação de que a vida vale a pena, irá partir à procura de experiências, ou se retrairá, fugindo do mundo. A inadaptabilidade da mãe (ansiedade ou estado depressivo) podem, portanto, tornar-se evidentes para o bebê antes mesmo que este tenha nascido).[10] 

Toda essa demanda é percebida e sentida em termos somáticos. Isso aponta que o bebê não só passou por experiências de variação de pressão, temperatura e distintos fatores ambientais não complexos, como também pode ser capaz de distinguir e iniciar uma maneira de regular uma forma de suportar essas mutações. A priori, para o observador, o ambiente “é tão importante”, apenas “quando há uma simples continuidade do ser quanto no momento em que ele provoca uma intrusão e a continuidade é interrompida pela reação.”[11] Entretanto, o autor não vê motivo algum para que o bebê perceba um ambiente satisfatoriamente bom. O ambiente, deve-se recordar, é de todo vital para o crescimento natural do ser humano rumo ao viver.

Pode-se dizer que, para a criança, a continuação da mãe e do seio é de suma importância, pois a mãe assegura ao infante sua presença física e seu perfil de doadora sensível às suas necessidades afetivas. Por outro lado, Winnicott faz notar que não se pode entender que a riqueza da finalidade do amamentar seja apenas a do zelo para evitar sintomas, e sim:

O objetivo dos cuidados maternos não está limitado ao estabelecimento de saúde na criança, mas inclui o fomento de condições para a experiência mais rica possível, com resultados de longo prazo na profundidade e valor crescentes do caráter e da personalidade do indivíduo (WINNICOTT, 2015, p. 63).

Pensando sempre na criança em desenvolvimento, a mãe deve estar adaptada, quase sempre, de forma integral, para desempenhar a função de ser sintonica ao seu bebê. Essa atitude particular pode fornecer ao infante condições para que possam ser executadas tarefas essenciais que consigam mantê-lo no caminho de ser. O autor denominou essa condição de primeira mamada teórica. Ela vem desempenhar a reunião das primeiras mamadas sendo, dessa maneira, a inauguração da amamentação.

Esse contato da genitora com o infante, já desde o início, através da amamentação e do cuidado dado por ela, aponta para um possível padrão de relação entre mãe e bebê. Entretanto, deveras considerável para a relação que vai ser estabelecida com o mundo externo, porque é a mãe a figura ímpar que conceberá do que a posteriori será designado de não-eu.

Winnicott categoriza algumas dessas funções que serão executadas pela cuidadora suficientemente boa: “holding, manipular e apresentar objetos” (WINNICOTT, 2005, p. 26).

Nesse percurso, o bebê tem a possibilidade de integrar-se devido aos cuidados da genitora quanto a sustentá-lo frente ao seu próprio corpo, no colo. Essa função é chamada de – holding [12]e se trata de umasituação fundamental para que a integração se faça. Tem-se, assim, um comportamento imperioso que facilitará, junto a todos os outros atributos peculiares anexados a outra função, a do handling e ao fornecimento do objeto[13] (object-presenting).

Este desenvolvimento é função da herança do processo de maturação e concomitantemente, da junção de experiências de vida. O ego elementar do infante, que já veio junto dele ao nascer, estava, em princípio, preparado para se desenvolver e ser integrado. Tendo como endereço quase certo o estágio do eu-sou[14] e da formação do si-mesmo, o estado de tornar-se inteiro, que vai ser desenvolvido com o tempo, o infante necessita, imperativamente, ter experiências possíveis de integração.

Por outro lado, nas tarefas do estágio inicial, o bebê já tem a tendência que o conduz em direção à maturidade e conta, também, com a criatividade primária, bem como ele carece de desempenhar as tarefas desse período inicial com esses elementos já herdados. Todavia, ele não pode criar isso do nada, do vazio, a esmo. É preciso um conjunto de elementos capazes de oferecer condições internas que o façam tornar real seu potencial criativo, dado este que é a adaptação da mãe sensível às suas necessidades. Nesse percurso, “o bebê conclui que o mamilo e o leite são o resultado de seu gesto que é lançado pela necessidade ou são resultados de uma ideia que veio acoplada na crista de uma onda de tensão instintiva” (WINNICOTT, 1990, p. 130).

Portanto, a “criatividade primária” acontece contanto, se estimulada pelos impulsos inatos. O encontro desses elementos possibilita o bebê criar novas maneiras de experiências, que pode ser originada em novas dimensões de dados para a constituição do infante e do ser humano de forma geral. Essa ideia, formulada pelo autor de uma criatividade psíquica originária, é intrínseca à natureza humana. Então, “é o bebê que cria o seio, a mãe e o mundo” (WINNICOTT, 1994, p. 347). Assim, ligada à autenticidade básica – adversa à reatividade, a criatividade primária desempenha um papel na constituição do que será o si-mesmo unitário (DIAS, 2017), dado que “é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self)”. O ser criativo está, assim, conexo à “experiência de um estado não-intencional, uma espécie de tiquetaquear, da personalidade não integrada” (WINNICOTT, 1975, p. 80-81).

Em suma, depois de apresentadas noções do desenvolvimento emocional do bebê, seu caminho criativo, que poderá levá-lo a trilhar, de forma saudável, seu amadurecimento quando tudo correr bem, daqui para frente, serão apontadas, nesse trabalho, as nuances da percepção corporal do bebê, pois o tempo, necessário para esse acontecimento, dará ao lactente condições para que possibilite a continuidade do ser. A tarefa de alojamento traz para junto de si uma noção corporal mais inteira, ou seja, o despertar contínuo do soma.

3- O CONCEITO DE INTERLIGAÇÃO DO SOMA E DA PSIQUE

D. W. Winnicott, com toda propriedade, foi um dos psicanalistas que mais se interessou em realçar a valorosa noção do corpo para se constituir uma existência benéfica. O corpo é vivo. O autor via o corpo como uma base essencial para a psique, pois essa era inaugurada pela elaboração imaginativa do funcionamento corpóreo. Em todo caso, é o conceito de personalização que floresce dessa absorção, levando a uma diferenciação entre a teoria Winnicottiana e outras escolas psicanalíticas, detentoras de outros conceitos, que levam em consideração a certeza da instalação da psique no corpo.

Winnicott (1931) escreveu um pequeno artigo intitulado “Psiquiatria infantil: o corpo enquanto afetado por fatores psicológicos”, considerando as mudanças e sintomas corporais atrelados a estados emocionais normais e anormais. A intenção do autor era a de atingir o problema do espectro da noção psicanalítica do desenvolvimento. Segundo ele, é crível perceber prontamente que o corpo da criança é abalado de diversas formas. Por exemplo: uma criança deprimida imagina que existem coisas maldosas advindas de dentro dela ou que está vazia; sua fantasia a despeito de seu corpo é indiretamente afetada por isso. Quando ela consegue perceber que, às vezes, já alcança uma apercepção de que ela e o corpo são um só, o que desencadeia uma preocupação com tudo e aumenta sua sensação do corpo, podendo levar à valorização extrema de alguns problemas de pele.

O autor se ateve a detalhes que o levam a pensar no estudo da criança quanto ao aspecto da abrangência para expor com mais clareza a psicologia das emoções. Porém, de acordo com seu olhar, precisariam ser construídas pesquisas sobre o que sucede com o corpo quando uma criança (em várias idades) fica mexida em relação à alimentação, à evacuação ou à micção, ou mesmo quando fica agressivamente agitada, moderadamente ansiosa por um tempo longo etc.

Todo esse aspecto acima citado mostra que o autor faz uma distinção entre amadurecimento pessoal e crescimento corpóreo. Continua, ainda, afirmando que “é apenas uma miríade de possíveis exemplos para elucidar como uma atividade (neste caso um menino correndo) pode encerrar diversos resultados, conforme o estado emocional da criança naquele momento” (WINNICOTT, 1931a/2005, p. 163)

O estado de amadurecimento está intimamente ligado às experiencias do viver, que são facilitadas pelo ambiente suficientemente adequado, como mencionado anteriormente, as quais emprestam possibilidades para a composição da personalidade unitária. Já o crescimento corpóreo, depende, em grande medida, da contribuição genética, mas o fator ambiente também é muito decisivo, posto que pode alterar o desenvolvimento físico do lactente por ser gravemente danificado por circunstâncias relativas ao amadurecer.

3.1 HOLDING E HANDLING

Todo esse percurso vai depender de um cuidado essencial da mãe, o qual se caracteriza como o ato de segurar o bebê para que o mesmo prossiga no seu amadurecimento. Esse ato é chamado de holding e handling. Ora, o bebê necessita de alguém que o sustente, que exerça a função holding, a qual, por sua vez, é tanto um suporte físico quanto psíquico doado ao bebê pelo meio ambiente que dele cuida. Esses são modos intuitivos por meio dos quais a mãe assegura a continuidade do ambiente vivo.        Abarca um modo empático e estabelece uma rotina de mimos, bem como, se manifesta como padrões de atitudes afetivos que dizem respeito ao limpar, ao proteger. O bebê necessita ser contido em segurança física e acolhido psicologicamente. Esse acalanto empresta equilíbrio e esperançaao ambiente, essencial para o desabrochar de tendências hereditárias do infante e fornece segurança em relação à gravidade. Trata-se de um processo altamente importante, diz Winnicott, posto que dialoga com a continuidade do ser, além de fazer conexão com a ilusão e com a integração de partes do self, sendo essa uma experiência mais enriquecedora. Além disso, ao segurar o bebê “as pré-condições, tanto internas como externas ao bebê, proporcionam uma experiência do ego satisfatória”, e ele pode adquirir confiança até mesmo no relacionamento (WINNICOTT, 1962a/2007, p. 61).

Já o handling diz respeito ao contato pele com pele entre o bebê e o cuidador. Estão incluídos aqui os gestos voltados aos cuidados físicos e que cobrem o manejo corporal do bebê durante os apoios básicos, tais como: banho, troca, amamentação etc. Esse processo auxilia a formar as bordas do corpo, a harmonizar a vida psíquica (realidade interna) com o corpo (esquema corporal), a diferenciar o eu do outro (no tempo certo do amadurecimento) e muito importante para distinguir a psique do seu próprio corpo (personalização). Essas são bases mínimas para o estabelecimento da formação de um ser saudável e criativo. DIAS, (2017, p. 185), salienta que no segurar-manejar estão incluídas todas as experiências sensórias necessárias: ser envolvido, de todos os lados, de forma a ter temperatura e ritmo que façam o bebê sentir tanto o corpo da mãe quanto o seu próprio corpo, e inúmeras sensações táteis, garantidas ao ser manuseado de diversas maneiras. Essas experiências permitem ao bebê habitar, mesmo durante pouco tempo, no corpo. Com isso, é favorecida a agregação psicossomática, contribuindo para o sentido de real, ou seja, de realidade do si-mesmo, que é oposto ao irreal. Esta experiência de estar vivo e existir ganha constância, peso e gravidade. Todo esse processo deixa mais fácil a tendência à unidade, à morada da psique no corpo.

3.2 PSIQUE-SOMA E A MENTE

Para o autor, a natureza humana, do ponto de vista interno, “não é uma questão de corpo e mente – e sim questão” imperiosa, “de inter-relacionamento entre soma e psique” (WINNICOTT, 1990, p. 44). Ele continua dizendo que é necessário olhar para a natureza humana de três maneiras, as duas acima já indicadas e, a seguir, a terceira: “A mente estabelece uma divisão à parte, e deve ser atendida como um caso especial do funcionamento psicossoma”.[15] Entretanto, nessas funções do soma e da psique, há distinções ativas entre funções do corpo e funções psíquicas; assim, soma e psique são intimamente, pela própria natureza, interligados. “A base para a psicossomática é a anatomia do que é vivo, que é chamada de fisiologia.”[16] “A essência humana é essencialmente psicossomática” (DIAS, 2017, p. 85).

Então, o soma é um corpo vívido, faz um caminho de ser personalizado e vai se constituindo, na elaboração imaginativa pela psique. O corpo, que tem um início para se tornar vivo, não é apenas físico e nem unicamente anatômico; esse corpo que Winnicott fala “não é um corpo que possa ser estudado por meio de cadáveres” (DIAS, 2017, p. 86). Antes mesmo, é inerente a esse corpo a respiração, as sensações, o calor, a motilidade, a fome etc. Ele “é um aspecto do “estar vivo” do indivíduo”[17] , da vitalidade desse como pessoa, uma vez que, sendo corpo animado, “os tecidos vivos que fazem parte do animal como um todo, é afetado pelos estados variáveis da psique daquele animal” (WINNICOTT, 1990, p. 44). Por isso, quando situações que provocam inquietação ou, aflição, nas quais o metabolismo fica reduzido a quase zero, no momento de atravessamento dessas questões, (WINNICOTT,1931b/2000, p. 71-72), tem-se: “Alguns ferimentos não saram simplesmente devido a uma falta geral de interesse por parte da criança, e dos tecidos, em viver” e, seguindo de outro dado, sabe-se que a deficiência de bonificação oral “pode adiar o desenvolvimento infantil – demora no andar e locomoção de  modo desajeitado, retardo na fala, dificuldade em brincar  e se comunicar com o outro”.

Por outro lado, o uso que Winnicott faz da palavra psique está relacionada não ao soma mas sim a, algo que faz incluir uma forma especializada do funcionamento psicossomático. Tem-se início, a princípio, com ela, a saber, a “psique, aqui, a signifique elaboração imaginária (imaginative) dos elementos, sentimentos e funções somáticas, isto é, da vitalidade física” [18]. Essa é a função originária, ela se desenvolve, pois amadurece no tempo com especificidades mais intrincadas acrescida pelas ações mentais complexas da atividade do pensar.

Deveras importante é olhar o desenvolvimento do indivíduo desde o início. Eis um corpo, “sendo que a psique e o soma não deve ser distinguidos um do outro”. [19]     Vindo na mesma direção, (DIAS, 2017, p. 87) acrescenta que “a tarefa central da psique é a constituição paulatina da temporalidade humana” e, assim, segue “o sentido da história, na vida humana”. Então, no princípio, na temporalidade primitiva do bebê, que pertence ao corpo, pertence à psique, “não apenas a elaboração imaginativa das experiências corpóreas de todos os tipos, como também há um armazenamento e reunião das memórias dessas experiências”.

A base da psique é o soma. Ele é o primeiro elemento a se instalar. O caminho natural é perceber que o amadurecimento segue e, consequentemente, caminha para um estado de refinamento. Nessa proposição, a psique faz uma ligação, de maneira natural, e quando segue de forma paulatina articula “as experiências passadas, as potencialidades, a consciência do momento presente e as expectativas do futuro”. É desta forma “que o self passa a existir” (WINNICOTT, 1990, p. 37).

3.3 CONCEITO CENTRAL DE ELABORAÇÃO IMAGINATIVA

Ressaltando que a psique para Winnicott é o resultado e que também opera a elaboração imaginativa das funções do corpo. Esse corpo, sendo organizado imaginativamente, é aquele corpo vivo que respira, chupa o dedo, busca algo, tem gesto, mama, descansa, tem mudanças fisiológicas somáticas, esperneia, é acalentado. Desse modo, “à anatomia da ação deve ser acrescentado o significado do ato para o indivíduo, por isso, é algo significativo, em cada caso, ao indivíduo que o faz”. [20]      

Entendendo que o desenvolvimento é usualmente doloroso e marcados por conflitos, mas, no começo, tudo é passado pela experiência corporal por meio do corpo, nesse quesito, pode-se dizer que “está sendo personalizado pela elaboração imaginativa” (DIAS, 2017, p. 87). No início, isto é, desde o nascimento, o infante já tem uma vida e já pode-se dizer que é o início, embora comedido, de uma vida pessoal. Toda sua experiência pode ser vivida não apenas como simples e paliativa sensação física, mas, de certo modo, é, nesse ponto, nota um desenvolvimento que já faz perceber um atravessamento de sentido. Sentido esse que pode ser notado no ato do brincar e, também, além do lado saudável, por uma “tensão e pressão do crescimento emocional normal, bem como certos estados anormais da psique, já que pode manifestar um efeito adverso sobre o corpo” (WINNICOTT, 1990, p. 43).

Esse caminho do conceito de elaboração imaginativa é sempre anterior aos constructos das intervenções mentais, sejam elas de representação, verbalização ou simbolização. Com essa ideia, continua dizendo Winnicott (1970/1994, p. 209) que “Tudo isto começa anteriormente à época em que é necessário adicionar os conceitos de intelecto e verbalização.” Apesar de ter um papel ativo que se faz na psique, concomitantemente, a base do self, sem dúvida nenhuma, se configura na base de um corpo vivo que, não apenas tem formas anatômicas visíveis[21], como, também, vivas são suas funções.

Esse é um ponto no qual, segundo a teoria Winnicottiana, parte da psique do indivíduo ocupa-se com as interações, fazendo base tanto no corpo, quanto com ele, e com os inter-relacionamentos com o mundo compartilhado. As funções já apresentadas nas quais o autor designa como elaboração imaginativa do corpo e, também, do arsenal de memórias, contribuem para a psique “ligar o passado já vivido, o presente e a expectativa de futuro uns aos outros, dá sentido ao sentimento do eu, e justifica nossa percepção de que dentro daquele corpo existe um indivíduo” (WINNICOTT, 1990, p. 46).

Ademais, a psique, sendo construída nesta toada, ganha poderes ao assumir uma posição baseada de que é possível haver contato com outro lugar tangível, em outras palavras, com a realidade externa. Ela passa, então, a se tornar qualitativamente enriquecida por todos os atributos que veio conquistando em suas experiências desde o início. Além disso, a partir do seu amadurecimento, poderá fazer voos para fora do que pode ser percebido como os alcances da ambiência. Mediante este progresso, “será capaz, não só de se apropriar, mas também de se abdicar a se adaptar, e de se transformar numa criatura com algo que parece ser capaz de fazer escolhas” [22].

Embora todo esse processo possa acontecer apenas num ambiente suficientemente bom, ele não acontece de forma mecânica. Pensando no crescimento corporal, a razão anatômica do corpo é mais nítida; entretanto, no expandir da psique, que se fará analogamente e em parceria com o corpo, poderá haver a possibilidade de falhas no percorrer do seu acoplamento no corpo e, com isso, provavelmente, está expressando as consequências de distorções causadas pelo fracasso adaptativo do ambiente.

O florescer psicossomático é uma obtenção de forma homeopática, ou seja, acontece de maneira paulatina, tendo seu próprio ritmo e nuances singulares. Como já mencionado nesse texto, a maturidade é sinônimo de saúde, e saúde é estar em um estado de amadurecer, como um movimento de ir sendo de forma tranquila. Portanto, “qualquer falha no desenvolvimento do indivíduo”, que de certa forma se faz acontecer, “é uma distorção, e um pulo aqui ou um atraso ali deixam cicatriz” [23].

É importante fazer a distinção desse conceito – elaboração imaginativa – em relação ao conceito de fantasia da tradição psicanalítica clássica. Como salienta Winnicott,

Ocorre-me que possa estar usando a palavra “fantasia” de uma forma pouco familiar a alguns de vocês. Não estou falando sobre o fantasiar, ou sobre a fantasia imaginada, mas sim pensando na totalidade da realidade psíquica ou pessoal da criança, certa parte dela consciente, mas a maior parte, inconsciente, e, ainda, incluindo aquilo que não é verbalizado, imaginado ou ouvido de maneira estrutural, por ser primitivo e próximo das raízes quase fisiológicas das quais brotas. (WINNICOTT, 1961/11994, p. 56)

Nesse aspecto, Dias (2017) aponta para uma possibilidade em que a função psíquica primária, é a elaboração imaginativa dos desempenhos corpóreos, mas isso incluí o que não é verbalizado, e tampouco figurado, como próximo das raízes fisiológicas que discute. Isso tudo é base imperativa para a fantasia, no sentido mental, tornar-se uma aquisição à frente no amadurecer do indivíduo. Quando o infante começa expulsar a mãe  como objeto subjetivo, no intuito de colocá-la para fora da área de onipotência, nesse caso, algo novo acontece em sua trajetória: a fantasia.

No conceito winnicottiano, a função da elaboração imaginativa não esvanece com o surgimento da capacidade de fantasiar. É uma função que permanecerá por todo o sempre e cada vez mais complexa. Essa complexidade, incluindo as ações mentais, o crescimento e a maturidade. Todo esse trabalho não se resume a apenas fazer nascer, a posteriori, a fantasia; a mente é diversa da psique, e ela está conectada ao soma e à conduta do corpo. Isso se dá a fim de que a mente se faça depender de partes do cérebro que se expandem na sequência de elementos ligados à psique primitiva (filogênese), retomando que a mente é diversa da psique; então, “é a mente a responsável pela gradual aquisição, pelo infante, da aptidão de esperar a comida ficar pronta, ao mesmo tempo em que escuta os barulhos que indicam a proximidade da alimentação” (WINNICOTT, 2005, p. 9).

Entretanto, no início, a mãe precisa adaptar-se incondicionalmente ao bebê para que ele possa se desenvolver sem deformidades. É permitido à mãe, com o passar do tempo, que ela possa cometer falhas nessa adaptação, pois a mente começa a ter flexibilidade de lidar com essas distorções. Para o autor a mente reúne-se à mãe e a tira dessa pressão de seu desempenho exemplar. Assim, “é papel da mente pautar eventos, acumular memórias e identificá-las. Através da mente, a criança é capaz de usar o tempo como forma de medida e também medir espaço. E relaciona causa e efeito” [24].

A criança, no caminho do amadurecimento, é envolvida por uma certa sagacidade em lidar, e até mesmo em aceitar, alguns atributos pertencentes à mãe. Nesse quesito, isso é uma conquista da própria capacidade de independência, que se faz contrapor à incapacidade materna de adaptação aos cuidados e exigências do bebê. De certa forma, “o desenvolvimento implica um ego que alcançou uma independência do ego auxiliar da mãe, podendo-se agora dizer que há um interior no bebê e, portanto, também um exterior; o esquema corporal inicia a viver e logo adquire complexidade”; com isso, “a preocupação sentida pela criança se transforma em atividade complexa ao se unirem na mente do lactente a mãe-objeto e a mãe-ambiente” (WINNICOTT, 1963/20007, p. 72). Ainda a doação do ambiente continua a ser essencial, mesmo o bebê já tendo desenvolvido uma pequena estabilidade.

Portanto, todo esse caminho imaginativamente elaborado, a partir do princípio da vida, os acontecimentos dos papéis corpóreos do bebê, tais como, motor, sensorial e instintual, são, em certa medida, que o comportamento do id não é delapidado e sim, “reunidos em todos os seus aspectos e passa a ser vivência do ego”. Com toda propriedade, Winnicott autentica que “não faz sentido usar a palavra ‘id’ para fenômenos que não podem ser notados, catalogados, vivenciados e eventualmente comentados pelo funcionamento do ego” [25].

A partir de um certo momento do amadurecimento da elaboração imaginativa, implica-se que o ego do lactente estará apoiado num ego corpóreo. Entretanto, o desenvolvimento do ego só pode acontecer se apoiado em cuidados ambientais,[26] “sendo esses cuidados inseparável daquele da existência da criança como pessoa”. Sendo assim, todo este processo é baseado fundamentalmente em uma conquista, que pode ou não vingar. Portanto, Winnicott esclarece que: “Tudo isso surge depois que a criança começou a usar o intelecto para examinar o que os demais veem, sentem ou ouvem e o que pensam quando se encontram com esse corpo infantil” [27].

3.4 OS ESTADOS TRANQUILOS E EXCITADOS DO BEBÊ

Com base nisso, todas estas experiências acontecem nos estados tranquilos e excitados do bebê. Sabendo que, desde o início, o infante está num grau de total dependência e, definitivamente, sem nenhuma consciência disso, como se espera, deverá haver a adaptação inteira por parte da mãe nos cuidados físicos da criança. Além disso, pode ser percebido que para “a criança com sorte, o mundo tem um início de forma tal que se conjuga com sua imaginação”, dessa forma, “o mundo é costurado na própria tessitura da imaginação” (WINNICOTT, 1949a/2015, p. 81). Dentro deste caminho de experiências, a vida íntima do lactente é embelezada com o que é sentido no mundo compartilhado.

Logo, a situação de uma crescente tensão instintiva – ir em busca de alimento, retira o bebê de seu estado tranquilo. Em seu repouso, nasce o impulso de ir encontrar algo em algum lugar. A tensão aparece galopante, ferozmente. Em seu estado de relaxamento, não existem esses impulsos terríveis. Winnicott deixa claro que o papel da mãe é fornecer condições para o início do momento excitado “porque ela está biologicamente orientada exatamente para esta empreitada” (WINNICOTT, 1990, p. 120).

A primeira mamada teórica é rica, pois direciona o bebê à uma construção de episódios que fundam no tempo a memória de experiências do contato relacional. Esse processo é fundamental para ganho de experiências que o conduzem ao amadurecimento emocional. A primeira mamada teórica não é significativa como bagagem emocional para o bebê, devido à imaturidade da criança; mas, sendo este processo, no início, satisfatório, ocorre que o sujeito pode desenvolver um padrão de mamadas a partir da primeira experiência [28]. Ou seja, já começa ser estabelecido, a princípio, de como será o padrão de entrosamento entre o lactente e sua mãe, em decorrência disso, dependerá a relação futura com o meio compartilhado, entendendo que a fonte vital para esse processo é a mãe como experiência primeira do encontro com o não-eu.

O termo instintual é usado por Winnicott, para denominar potências biológicas que surgem e desaparecem na vida do lactente e que requerem ação. Assim, “a excitação instintual leva a criança, a preparar-se para a satisfação quando o mesmo atinge seu estágio de máxima exigência”; na continuidade do movimento, se essa satisfação é descoberta no ápice da demanda, “surge a recompensa do prazer e também o alívio temporário do instinto” [29]. Os instintos vêm e voltam e não formam a vida do bebê ou do indivíduo já crescido. Nesse caso, quando tudo está em estado de traquilidade, a vida do bebê continua num movimento de ir existindo, sem rompimentos.

A forma mais clara pela qual o corpo é afetado tem a ver, em grande medida, com as fases de inquietação instintual. O bebê ou o adulto, de tempos em tempos, fica excitado e seus instinto são provocados. A partir daí, de um impulso, um movimento é feito. Certamente isso tudo vem de um ritmo que provêm do interior, como também de estímulos advindos de fora (reais ou imaginados). O corpo se lança em uma trajetória, em busca de um clímax: a fome busca a refeição; algo aponta para uma atividade excretória; a excitação genital pode acabar em um orgasmo genital; ou o acúmulo de agressividade conduz à briga. O que se faz perceber é que, basicamente, “no bebê ou no adulto há uma “elaboração imaginativa” de todas as funções corporais (desde que haja um cérebro funcionando)” [30]. Logo, é com um corpo inventivo que o indivíduo se relaciona. Por isso, ao comentar sobre excitação instintiva, é importante “separar entre o corpo, ele mesmo, e as ideias e sentimentos que o indivíduo tem desse corpo”, mas tampouco existe razão para ordenar os instintos, e, nem mesmo, para se definir se pode haver apenas um único instinto ou mais de um (DIAS, 2017, p. 152). Os instintos são assinalados pela reivindicação da ação.

Além disso, como nos mostra Winnicott, a exacerbação pode ser local ou geral e “tanto pode contribuir para que o lactente se sinta um ser total, quanto ser uma decorrente do estágio de integração alcançado no percurso do desenvolvimento”. Ademais, enfatiza o autor, os mecanismos de excitação carregam um caráter soberano e, conjuntamente, à elaboração imaginativa, se direcionam nos termos do instinto influente. Como exemplo, no bebê, o aparelho que domina é a ingestão, de modo que o “erotismo oral” com tonalidade de ideias de natureza oral, “é amplamente aceito como característico da primeira fase do desenvolvimento instintivo” [31].

É preciso ressaltar que o bebê não tem noção de que as tensões instintuais lhe pertencem, pois trata-se de um ser imaturo e, além disso, não-integrado. Sem dúvida, não habita um corpo neste processo. Mas é pelo brincar, diz Winnicott, que “o corpo obtém satisfação ao participar da dramatização, e no fantasiar ele a alcança de maneira secundária, pelo fato de no fantasiar ocorrerem excitações somáticas localizadas, como há fantasia junto com o funcionamento corporal” [32]. Ademais, o bebê não possui discernimento suficiente para dar significados aos efeitos corporais e nem se apropriar da sua própria impulsividade, que por ora não reconhece como sua. Quando é interrompido o sono ou se tem fome, as cobranças instintivas “podem ser ferozes e assustadoras e, a princípio, podem parecer à criança como ameaça à existência. Ter fome é como ter dentro de si uma alcateia de lobos” (WINNICOTT, 1949b/2015, p. 90). O bebê continua não sabendo de onde essas intempéries chegam e nem como as invadem, formando, portanto, um mal-estar.

A mãe ajustada[33] ao bebê, com envergadura para alcançar as necessidades do mesmo, compromete-se com sua disposição, a evitar um mal maior, ou seja, a interrupção da continuação de ser. Portanto, se não existir uma mãe atenta as necessidades do infante e não for apresentado o mundo em pequenas doses, haverá falhas no desenvolvimento maturacional do bebê. Assim,

o conhecimento exato da mãe do que é real e do que não é, ajuda a criança de muitas maneiras, pois gradativamente a criança vai compreendendo que o mundo não é tal como se imagina, e que a imaginação não é exatamente como o mundo (WINNICOTT, 1949a/2015, p. 81).

 Esse benefício é percebido ao ver que o ambiente assegura experiências íntegras, fazendo permanecer junta toda uma cadeia de movimentos e informação, com o ambiente doando satisfatoriamente apoio ao ego. Toda a expressão advinda da tensão instintual vai ser uma prática que poderá enriquecer o ego e beneficiar a coesão psicossomática. Para Dias, “sem esse apoio, as tensões instintuais, ao invés de se integrar e personalizar, permanecem externas e são sentidas como interrupções, assim, podendo tornar-se atormentadoras, chegando a estabelecer uma disposição paranoide” (2017, p. 154).

O lactente mais consistente vai percebendo com mais maestria os impulsos instintuais como um aspecto vivido do self. Desse momento em diante, ele passa a ver todas essas sensações como próprias e não mais vinda do ambiente. A excitação leva a criança a tomar uma trilha para a satisfação quando a tensão se torna quase que insuportável. Por isso, “Se a satisfação é achada no momento culminante da exigência, surge a recompensa do prazer e também do alívio temporário do instinto” (WINNICOTT, 1990, p. 57). A satisfação deverá ser completa para que o estado de repouso possa acontecer incondicionalmente, de maneira preguiçosa e tranquila, de forma que o lactente possa ir para seu mundo subjetivo e permanecer em seu estado de contemplação solitária, sem ser perturbado.

É ímpar o papel desempenhado pelo ambiente, o qual assegura as possíveis experiências íntegras e, concomitantemente contribui ao fazer preservar atrelados todos os movimentos e dados, emprestando um rapport que satisfatoriamente dá apoio ao ego do lactente. A expressão vinda do bebê pela tensão instintual poderá ser um condutor que torna o ego mais rico. Esse movimento ajudará na unidade psicossomática.

Deveras importante nessa sequência do desenvolvimento emocional do lactente é a motilidade. Nos conceitos winnicottianos, esse seria o suporte para a agressividade. [34] O ambiente descoberto pela criança se faz no contra ponto da concretude do mundo externo como resistência ao contato do bebê. Além disso, na gestação, as paredes internas do útero servem de resistência contra os movimentos executados pelo mesmo. Essas experiencias chegam homeopaticamente na saúde e emprestam textura, atributo e firmeza para o alcance da integração. É nos estágios iniciais que o “Eu e o Não-Eu estão se constituindo, é o componente hostil que irá, geralmente, levar o indivíduo rumo a um objeto ou a um Não-Eu que ele sentirá como externos”. (WINNICOTT, 1950/2000, p. 301). Nesse ponto de vista, faz-se perceber que o impulso e a agressividade desenvolvem um estado interno no bebê direcionando-o a buscar um objeto externo, pois é nesse encontro de resistência por parte do mundo externo consistente que há movimento e, portanto, a experiência de satisfação é saboreada.

Além disso, todo esse material que é provido do ambiente e, também das experiências do bebê, levam a entender que “todas as funções são elaboradas na psique, e mesmo no início há uma fantasia associada à excitação e à experiência alimentar” (WINNICOTT, 1957/2015, p. 58), só podem acontecer se a mãe (cuidadora) for capaz de emprestar condições para que a perseverança do bebê se faça suceder ao mesmo tempo: voracidade instintual e a livre circulação que advém da excitação. Pelo simples andamento desse processo, a elaboração imaginativa é enriquecida gradualmente. Com sorte, a motilidade se anexa ao tenso papel instintual. Neste andar, como aponta Dias (2017, p. 159), “o trabalho da psique no corpo é facilitado”, não somente quando a genitora consente que seu filho, enquanto mama, explore e usufrua de um contato íntimo que se faz presente com o corpo, mas também quando ela promove a sensação de estar à vontade no bebê com esse corpo estimulado e sentindo as iminências instintuais, com o distinto corpo presente da mãe. Assim,

Na psicanálise, em que há tempo para conjugar todas as raízes mais remotas da plena experiência sexual dos adultos, o analista obtém boas provas de que, numa satisfatória amamentação, o fato concreto de tomar parte do corpo materno fornece um “esquema” para todos os tipos de experiência em que o instinto participa (WINNICOTT, 1957/2015, p. 59)

Portanto, nos estados tranquilos enquanto o bebê mama, lhe é proporcionado estar em estado de não-integração, para que possa sentir-se relaxado e sustentado em torno de si pelo amparo dos braços da mãe. Fica em estado de suspensão, contemplando e formando imaginativamente seus estados. Esse isolamento o faz ir descansar, ele não está se defendendo, mas, sim, promovendo um encontro natural de sua quietude, o qual faz se sentir seguro sem notar o ambiente. Como diz Winnicott, “a capacidade da mãe tem de ir ao encontro das necessidades, em constante processo de mutação e amadurecimento”. Se esse exercício for bem sucedido, o bebê faz passagens do estado excitado para o tranquilo e vice-versa, com facilidade. Assim, “ele – bebê – passa a acreditar na confiabilidade dos processos internos que levam à integração em uma unidade” (WINNICOTT, apud DIAS, 2017, p. 167).

Em suma, toda confiança adquirida pelo bebê em relação aos cuidados maternos, pode levá-lo a transitar do estado excitado para o estado tranquilo, de forma segura. Estes movimentos emprestam ao bebê a capacidade de adentrar no processo de integração da psique no corpo. Isso porque, é esse movimento, amparado pela segurança, que propiciará a ele fazer esta passagem, isto é, elaborar os estados psíquicos no corpo. Ele também, reconhece os limites corporais, diferentes dos do outro, e percebe o seu contorno existencial.    

Essa é uma melindrosa vereda do esquema corpóreo pessoal. O arranjo psicossomático só poderá ser composto como uma integração se tudo suceder de forma saudável no processo de amadurecimento. Isso faz com que ele possa complementar as funções, aprender a separar fato de devaneio. Consegue, a partir da elaboração imaginativa acomodar a agressividade e o erotismo que se faz presente no amor originário. Seu mundo interno passa a ser mais precioso. O bebê cultiva uma base que lhe levará a posteriores tendências e fantasias sexuais. Assim, Winnicott pontua que “fatores internos podem contribuir para promover a integração” e traz como exemplo “a exigência instintiva ou a expressão agressiva, cada uma delas sendo precedida por uma conversa aglutinadora do self com o todo” (1990, p. 137). 

Não se pode deixar de notar que o amadurecimento não é olhado pelo psicanalista inglês apenas como uma progressão instintual, mas também como um fator de assimilação dos funcionamentos corporais no que tange às relações ambientais e objetais. Como nos mostra Laurentiis:

[…] transformações egóicas, tampouco as regressões, na vida ou na clínica, se dão em termos só instintuais, mas como tentativas de recuperar o contato e a comunicação com o ambiente confiável e retomar o crescimento egóico que, em algum instante, ficou estagnado – e também como oportunidade de reintegrar os instintos (2016, p.  449).

4- CONCLUSÃO

Há tempos que a relação entre corpo e psique vem sendo observada com o interesse particular de aproximar os processos de saúde e doença produzidos a partir dessa afinidade. D. W. Winnicott mergulhou fundo para se inteirar sobre essa acomodação, o que forneceu um campo de conhecimento mais evidente sobre o tema. A área da psicanálise foi ampliada nesse quesito, assim como os meandros da extensão da saúde de um modo geral, e o segmento da psicossomática.

O movimento para a vida já se faz presente no âmago do bebê e, no início, ainda não existe um ser uno, como um eu de identidade definida. Esse transcurso vem ao encontro para que o sujeito possa convergir para o alcance da integração unitária. Entendendo que essa consistência só pode acontecer gradualmente e nunca de uma só vez e se compõe no conjunto acumulados de experiências integradas. Essa fase de absoluta dependência precisará de um contato muito próximo do ambiente cuidador, o qual facilitará às tendências pessoais herdadas, concedendo auxílio para esse avanço advir de acordo com elas, bem como adaptando sua continuidade de ser. Apenas sendo amparado, cuidado e recebendo os olhares necessário para sua formação o bebê poderá galgar o amadurecimento emocional, isto é, ter uma unidade singular.

Esse processo de continuidade leva consigo algo de suma importância para o bebê: a criatividade primária. Quando esse sobreviver for bem estabelecido, irá oportunizar uma conjuntura para resolver as tarefas do estado inicial, sem ela, no entanto, o bebê ficará sujeito a angústias impensáveis. Com isso, seu caminho será travado, posto que o bebê não pode criar um mundo no vazio, com recursos próprios. É preciso que o ambiente possa prover ações especiais para ele executar sua competência criativa. Winnicott comenta essa ideia postulando que o ser humano cria o mundo de novo, e esse trabalho é iniciado muito cedo, perto da mamada teórica.

Além disso, a integração do tempo e do espaço é básica para as tarefas do amadurecimento, pois não existe sentido de uma existência possível, realidade, essa, de um universo complexo entendido como: corporeidade, mundo e self, que se faça distante do tempo e do espaço. O espaço que se faz presente é importante para a constituição do ser unitário ou self. O bebê, ao ser gestado, já faz experiências, que o direcionarão a uma possível conexão, dependendo de como esse movimento será sentido na relação com o espaço.

É com essa relação que o mundo lhe é apresentado. Todo rumo à integração estabelece um alicerce na temporalização e espacialização do bebê, e, sem esses elementos constitutivos, haverá distorções pelo caminho. O sentido de tempo, então, no íntimo do bebê, é a continuidade da assiduidade que se faz pela repetição dos cuidados maternos, pois apresenta a continuidade do mundo. Não pode haver sujeito que não carregue memória de si, e essa circulação empresta identidade nas transformações. No conjunto, não pode haver embate se o self não puder encontrar o objeto – mundo externo para sentir sua resistência.

Todas essas sequências de experiências sentidas pelo lactente, irão levá-lo ao encontro de uma possível coesão, providas através de cuidados maternos, tais como holding e handling, bem como por meio do aumento de sua percepção de integração singular. Essa sucessão de atividades fará com que o bebê construa uma unidade – se tudo ocorrer bem no andamento do amadurecimento. No tempo próprio do lactente, surge a distinção, juntamente com a tendência à integração agindo no sentido de propiciar uma consonância, sendo que, no início é tudo indiferenciado pelo bebê. Dentro de seu tempo, o bebê ganha mais conformidade, pois já consegue, de certa forma, desfrutar de seu corpo. Não se faz por certo que o bebê consiga realizar essa proeza. Se não conseguir, sofrerá os danos advindos disso e poderá carregar esse fracasso para a fase adulta.

É possível perceber na clínica, em casos de doença psicossomática, que certas partes corporais são percebidas pelo paciente com ar de aversão, pois ainda o corpo não atingiu o patamar de integração, ou seja, o corpo não é sentido como seu. Todos esses fatores são de suma importância para que se possa compreender situações clínicas que pertençam a essa esfera.

Na clínica, a questão da desintegração e das doenças psicossomáticas deveriam ser abordadas com um possível posicionamento global para ofertar uma escuta que se faça integradora. Que possa ser observado, nesses casos, o pedido que será noticiado, a solicitação de auxílio que possa levar na direção de uma possível integração psique-soma. Neste percurso, será promovido a abertura para que elementos que permaneceram contidos, de forma confusa, possam ser expurgados e novas facetas criativas de estar no mundo possam nascer.

5- REFERÊNCIAS

Dias, E. O. A teoria do amadurecimento de Winniccott. São Paulo. DWW, 2017.

Laurentiis, V. R. F. Corpo e Psicossomática em Winnicott. São Paulo. DWW, 2016.

Winnicott, D. W. Natureza Humana. Rio de Janeiro. Imago, 1990.

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Winnicott, D. W. (1945a). Desenvolvimento Emocional Primitivo. In: Da Pediatria à Psicanálise (pp. 218-232). Rio de Janeiro. Imago, 2000.

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Winnicott, D. W. (1949b). O Desmame. In: A Criança e o seu Mundo (89-94). Rio de Janeiro. LTC, 2015. 

Winnicott, D. W. (1950). A Agressividade em Relação ao desenvolvimento Emocional. In: Da Pediatria à Psicanálise (288-304). Rio de Janeiro. Imago, 2000.

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Winnicott, D. W. (1962a). A integração do ego no desenvolvimento da criança. In: O Ambiente e o Processo de Maturação (55-61). São Paulo. Artmed, 2007.

Winnicott, D. W. (1962b). Primórdios de uma formulação de uma apreciação e crítica do enunciado Kleiniano da inveja (340-347). Porto Alegre. Artmed, 1994.

Winnicott, D. W. (1963). O desenvolvimento da capacidade de se preocupar. In: O Ambiente e os Processos de Maturação (70-78).

Winnicott, D. W. (1970). Sobre as Bases para o Self no corpo. In: Explorações Psicanalíticas (203-210). Porto alegre. Artmed, 1994.

Winnicott, D. W. (1971). O Brincar: A atividade criativa e a busca do eu (self). In: O brincar & a realidade (79-94). Rio de Janeiro. Imago, 1975.

Winnicott, D. W. O Primeiro Ano de Vida. Concepções Modernas do Desenvolvimento emocional. In: A Família e o Desenvolvimento Individual (pp. 3-20). São Paulo. Martins Fontes, 2005.

Winnicott, D. W. O Conceito de Indivíduo Saudável. In: Tudo Começa em Casa (3-22). Rio de Janeiro. Martins Fontes, 2016.

Winnicott, D. W. Amamentação. in: A Criança e o seu Mundo (pp.55-63). Rio de Janeiro. LTC, 2015.


[1] Dias, Op. Cit., p. 1.

[2] A psicanálise clássica Freudiana é aquela que tem como condutor central a teoria da sexualidade construída por Sigmund Freud.

[3] Op. cit., p.11.

[4] Op. Cit., p. 5.

[5] O conceito de soma e psique, será desenvolvido mais à frente.

[6] Op. Cit., p.8.

[7] Ibidem.

[8] Ibidem.

[9] Op. Cit., p. 150. Winniccott, tem um olhar mais promissor para essa situação de intrusão; para ele “o bebê passa a se habituar às interrupções da continuidade e se torna capaz de administrá-las, caso elas não sejam intensas em demasia, e nem excessivamente prolongadas.”

[10] Op. Cit., p. 148.

[11] Ibid., p. 150.

[12] Op. Cit., p. 27. Para Winnicott, “o holding, deficiente produz extrema aflição na criança, sendo fonte de: sensação de despedaçamento, caindo num poço sem fundo, realidade externa não pode ser usada para conforto interno e outras ansiedades classificadas como “psicóticas””.

[13] Os conceitos de holding e handling, serão desenvolvidos mais à frente, no conceito de soma.

[14] Esses conceitos não serão desenvolvidos, visto que estão intrinsicamente conectados à conquista da fase de dependência relativa, que ocorre posterior à dependência absoluta.

[15] Op. Cit., p. 29.

[16] Op. Cit., p. 44.

[17] Ibidem.

[18] Op. Cit., 1949, p. 333.

[19] Ibidem.

[20] Op. Cit., p. 45.

[21] Ibidem. Diz Winnicott em caso de anormalidade: “Muitas anormalidades físicas não são de natureza tal que um bebê possa estar ciente delas como anormalidades. […] constituí amiúde um fato que o bebê se dê conta da deformidade ou da anormalidade através da percepção de fatos inexplicados”.

[22] Op. Cit., p. 47.

[23] Ibidem.

[24] Ibidem.

[25] Op. Cit., (1962), p. 55.

[26] Winnicott (1962, p. 56), está atento também à algumas invasões cometidas pela cuidadora, diz ele: “Uma satisfação alimentar pode ser uma sedução e pode ser traumática se chega à criança sem apoio do funcionamento do ego”.

[27] Ibidem.

[28] Ver Winnicott (1990, p. 120): “para ele se as primeiras mamadas são mal conduzidas, pode ocorrer uma longa série de problemas. Um padrão duradouro de insegurança na relação pode ter sua origem na época da falha inicial no manejo do bebê.”

[29] Op. Cit., p. 57.

[30] Op. Cit., p. 58.

[31] Ibidem.

[32] Op. Cit., p. 72.

[33] “A totalidade dos cuidados maternos possibilita ao lactente viver num mundo subjetivo, povoado pela vida imaginativa, relativa ao funcionamento corpóreo e à atmosfera ambiental, cuja principal característica é ele estar protegido da invasão de qualquer amostra da realidade externa” (DIAS, 2017, p. 181).

[34] Comenta Winnicott (1950/2000, p. 300), “Algum tempo atrás fui surpreendido pela ideia, decorrente do meu trabalho clínico, de que quando o paciente está em busca da raiz agressiva de sua vida instintiva a tarefa do analista é mais cansativa, de um modo ou de outro, do que se a busca do paciente é pela raiz erótica”. 

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