A sombra do “Sistema”

Uma das utopias acariciadas pela humanidade está ligada à sensação de segurança e bem-estar anunciadas pelos avanços da ciência, pelo multiplicar-se dos inventos tecnológicos e pela promessa de liberdade e de realização pessoal aventada pelo capitalismo neoliberal. Parece até possível pensar que um dia todos poderão finalmente se unir ao grande cortejo dos “vencedores”.

Com os grandes avanços da informática, tudo parece realmente acessível. Alguns cliques no teclado de um computador ou de um celular e você tem acesso ao Sistema de alguma grande corporação. Uma musiquinha e algumas frases encorajadoras anunciam que você está a poucos passos de mais uma conquista. Você está prestes a fazer parte do cortejo dos vencedores, comprando mais um celular, um canal pago de televisão, ou contratando os serviços de um banco, de uma financeira ou de um plano de saúde. Uma voz amável o recebe e com poucas respostas você está finalmente incluído no Sistema que lhe dará direito a determinados privilégios, destinados aos prediletos.

Mal sabe você que acabou de comprar um pesadelo. No dia em que algo dá errado, ou que você quer desistir da compra, você liga e logo percebe que algo está errado. Se a espera não for demasiadamente longa, você se vê às voltas com uma infinidade de opções. Escolhe uma, torcendo que seja a certa e o Sistema pede que você se identifique, uma voz mais ou menos amável pergunta qual é o problema. Geralmente você é encaminhado para outra voz mais ou menos amável, que o encaminha para outra, ou então cai a linha. Depois de digitar seus dados para que o Sistema o reconheça, você é novamente submetido a um interrogatório, pois evidentemente você poderia não ser você. Claro, se você mostrou tanta confiança ao comprar os serviços da Companhia, como agora pode questionar se a mesma está cobrando duas vezes a conta, se não está prestando o serviço prometido, se suspendeu tal e tal benefício, se está cobrando indevidamente algo que estava incluído no serviço inicialmente vendido? Esse cara chato, desconfiado e questionador, que não é o súdito fiel do Sistema, não pode ser você.

Se tiver sorte e conseguir provar que você é você, então o(a) amável atendente ouve sua queixa e responde com tom inflexível:: “Desculpe, mas isso não consta no Sistema, infelizmente não posso fazer nada para ajudá-lo”. Se teimar em dizer que já pagou a conta, que seu celular não funciona ou que algo foi debitado indevidamente no seu cartão de crédito, você ouvirá a mesma voz inflexível dizer: “Lamento, mas isso não consta no Sistema”. Pode até acontecer, como aconteceu com uma paciente minha, que você ouça que, se recebeu uma fatura, você está devendo, mas que infelizmente não pode pagar porque seu débito não consta no Sistema e, dias depois, descobrir que seu nome está no SERASA.

Se por acaso o Sistema for ligado a algum órgão público então esqueça. Seus direitos são praticamente nulos. Você deve antes pagar e depois, se ainda sobrou dinheiro, preencher milhões de requerimentos, recursos, apresentar dezenas de xérox autenticados, assinaturas reconhecidas, gastar dias em idas e vindas, porque o Sistema só admite que determinados pedidos sejam feitos pessoalmente. Se você reclama pode ouvir algum infeliz dizer que ele não está ali para atender suas necessidades e que, ao contrário, você deve atender a Normas do Sistema. Se insistir um pouco mais pode até ir preso por desacato à autoridade. Esta rigidez porém admite uma quebra. Um envelopinho com um pouco de dinheiro de repente pode abrir brechas inesperadas na rigidez do Sistema.

Bom, se por acaso você acha que esses são os devaneios de um inimigo do progresso, pergunte a amigos e familiares. Não precisa ir longe, todos terão sua história para contar. Mas sempre há um consolo: agora você é um vencedor!

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