Independentemente do aspecto jurídico, essa é uma palavra pouco usada, embora a prática da prevaricação seja bastante comum. Para um psicanalista esse já é um fato curioso, que merece atenção. Por que algo que é percebido no âmbito do Real, não apresenta uma significação adequada no âmbito da palavra? Podemos imaginar que está havendo um recalque que impede o processo de significação de algo que faz parte do mundo real.
Vou fazer três exemplos do que entendo por prevaricação. Não sei se um jurista concordaria comigo, mas do ponto de vista do senso comum trata-se de situações de abuso de poder, de arrogância e, em última instância de injustiça, geralmente cometida contra os mais fracos.
O primeiro caso é ligado ao andamento das investigações sobre o incêndio da boate Kiss, no Rio Grande do Sul, que resultou na trágica morte de 242 jovens. Alguns pais, indignad
os, com o arquivamento das investigações sobre o eventual envolvimento de alguns procuradores no caso decretado pelo CSMP, denunciaram o ocorrido em panfletos distribuídos pela cidade e numa entrevista. Os procuradores envolvidos no caso sentiram seus “sentimentos” ofendidos ao serem questionados e resolveram indiciar os pais por calúnia. Temos assim a curiosa passagem de vítimas para réus, a realidade é virada pelo avesso.
O segundo caso, são as medidas tomadas pelo presidente Trump para a construção da muralha que deveria passar a dividir EUA e México. O problema não é apenas a construção da muralha e sua atitude em relação a milhões de imigrantes, mas é o ato abusivo de querer que o México pague para construir a muralha.
O terceiro caso é menos explícito, mas mostra o atual prefeito de São Paulo se encaminhando por um caminho escorregadio, já que se mostra propenso a tratar a administração da cidade como trataria aquela de sua empresa. O poder de um prefeito é “delegado”, não é absoluto, pois supõe submeter suas decisões aos representantes da cidade e ouvir os membros da comunidade. Em vez de fazer isso ele preferiu ridicularizar os questionamentos que foram levantados contra suas ações, manipulando dados oficiais importantes, que visavam mostrar que suas decisões não eram corretas.
Em todos esses casos parece haver uma dificuldade básica de acessar a realidade e de visualizar o outro. Quando o outro se torna incômodo é atacado, excluído, perseguido e ridicularizado. O que preocupa nesse processo, que corre o risco de se tornar generalizado, é a impossibilidade de simbolizar a realidade, em busca de significantes que não a neguem e sim que possam inclui-la em sua complexidade e ambivalência.
O problema que vejo nisso, como psicanalista, não é apenas ético, e sim é um problema de saúde mental coletiva. A exclusão da realidade (que Lacan chamaria de forclusão), leva a processos mentais de caráter psicótico, com graves consequências para o indivíduo e aqueles que ele afeta, no caso de figuras públicas, uma cidade, uma nação ou o mundo inteiro, repetindo páginas da história que preferiríamos não lembrar.