Gostaria de propor uma reflexão que surgiu de uma conversa com amigos e de uma entrevista com a filósofa e psicanalista Kristeva publicada por um jornal italiano. A conversa verteu sobre um convidado de Luciano Hulk (ele também se apresentou como psicanalista) que no programa afirmou acreditar mais nos valores da monarquia parlamentar do que da democracia. Um rei de fato representaria a nação e daria uma “identidade” aos cidadãos, enquanto um presidente, chefe de governo, é na sua opinião uma figura menos consistente, fluida, na qual, na melhor das hipóteses, só se identificam os que o elegeram.
Nunca fui monarquista, mas confesso que o argumento me fez refletir. Kristeva, analisando as últimas manifestações dos jalecos amarelos na França e a crise de identidade pela qual passa a Europa, comentou algo, que a meu ver dá continuidade a esse argumento, criando um estranho cruzamento de falas, vindas de lugares bem diferentes.
Kristeva compara nossa época à tarda Idade Média, que marcou o fim de uma época marcada por uma ordem universal sólida e introduziu uma transição que teve como desfecho a Renascença. Kristeva observa que, a partir da Revolução Francesa e do iluminismo, não foi cortada apenas a cabeça dos reis, mas também aquela de Deus. O lugar cultural ocupado pela religião foi cedido ao Estado, cabendo a ele garantir o futuro, a “salvação” terrena (o paraíso do consumo), a felicidade (gozo) e a realização pessoal de homens e mulheres…
Para além das reivindicações de caráter econômico dos jalecos amarelos (por sinal parecidas com aquelas dos caminhoneiros brasileiros), ela vê uma reivindicação que surge de um mal-estar não nomeado: a falta do pai…
Nas redes sociais homens e mulheres se manifestam, destilando um ódio marcado pela falta, sentindo-se onipotentes no mundo virtual, mas ao mesmo tempo experimentando toda a fragilidade de sua individualidade líquida no mundo real.
Os ditadores e as figuras políticas que, como Trump, Maduro, Putin e Bolsonaro, se dispõem a ocupar o lugar “paterno”, adquirem expressões que Kristeva localiza na cultura do espetáculo… Com isso se afastam do modelo dos políticos “irmãos”, que se apresentam como próximos do povo e que acabam por isso mesmo por serem odiados.
Para a psicanálise todas essas considerações remetem ao tema da importância da função paterna que, como observam Bauman e o psicanalista francês Melman (autor do provocador O homem sem gravidade), está em franca decadência. Sem função paterna o sujeito cai no abismo da angústia e do ódio, que repercutem em comportamentos de massa cada vez mais presentes nos cenários das mídias sociais e da vida real.