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Psicanálise

O sutil movimento do gesto e da escuta psicanalítica

(C) Odécio Barnabé

“Esse Quam Videri”[1]

Durante o período da formação em psicanálise, fui atravessado, e ainda constantemente ressoa essa vibração, por inúmeras ondas de questionamentos que me levaram a lugares inusitados e incompreensíveis. Dessa forma, ao longo do balanceável caminho que pude percorrer, dentro desse labirinto mutante, nasceram enigmas que antes não existiam. Tal como Drummond pondera, “No meio do caminho tinha uma pedra / Tinha uma pedra no meio do caminho”. Nesse contexto, a grande questão que paira é: o que é, em psicanálise, o gesto e a escuta?

São tecidas articulações invisíveis – ou não – as quais se formam no caminho-processo das investigações psicanalíticas, onde analista-analisando, compõem um jogo-brincar, do qual eclodem lisuras a fazerem sentido ou não, pois, antes de nascerem, estavam guardadas aos olhos daquele que se faz aprendiz, ou seja, é por meio desse caminho que se abrem possibilidades para esses elementos latentes se tornarem conscientes.

Podemos rememorar a mitologia grega, na qual teve início a base complexa das organizações sociais e, concomitantemente, a longa e progressiva conquista da consciência do lugar ocupado pelo ser humano na natureza, o qual levou ao surgimento da medicina enquanto prática e cuidado. Com o amadurecimento dessa prática, surgiu, com o tempo, também, a atenção a doença mental. É na Grécia Antiga, mais do que em qualquer outra cultura que a precedeu, que o indivíduo passa a ser, em essência, apreciado e reconhecido em sua especificidade. Em resumo, gradativamente nasceu a ideia de que o ser humano era composto não só de um substrato material – corpo e suas funções -, mas também, de uma substância imaterial, ligada aos sentimentos e à presteza do pensamento, a alma. Além do mais, um olhar para dentro dessa compreensão de relações entre tais dimensões – a saber, corpo e alma -, revela o veio filosófico e científico que deles herdaram o espírito de investigação psicanalítica (Volich, 2022).

            As dimensões corpo e alma, são perspectivas de importância ímpar na clínica, a qual se vale como real possibilidade de unificação desse corpo que ainda não é conhecido. Portanto, “apesar de possuírem instrumentalização do corpo que lhes permite viver, não possuem determinadas partes do corpo como campo de existência pessoal” (Safra, 2005, p. 102). Há casos em que indivíduos em análise possuem um corpo e fazem uso dele para viver, mas não contêm em certas partes desse corpo um campo que possa ser reconhecido e se faça significar como existência pessoal, posto que não há experiências de sentido corporal. Nesse caso, Winnicott faz sua contribuição ao realçar que a elaboração imaginativa do corpo, onde há o arsenal de memórias, contribui para a psique “ligar o passado já vivido, o presente e a expectativa de futuro uns aos outros, dá sentido ao sentimento do eu, e justifica nossa percepção que dentro daquele corpo existe um indivíduo” (1990, p. 46).

Qualidades do fluxo verbal são importantes. No entanto, esse verbal deve vir acompanhado, essencialmente, de vibrações do próprio movimento muscular do corpo em ação-movimento. Qualidades essas, no espaço da sessão, de experiências de proximidade e afastamento, que para Volich (2022) são encarnadas por meio da relação transferencial e muito mais notável nas determinadas condições reais do encontro entre analista e analisando, no divã ou frente a frente.

Ocorre, então, a necessidade de sustentar esse olhar-ação no contato visual, e é certo, que isso depende do modo de funcionamento do paciente. Por consequência, “inúmeros autores apontam que o encontro face a face é expressivamente indicado aos pacientes borderline e aos que apresentam doenças somáticas constituídas no contexto de um movimento de desorganização” (p. 417). Esse enquadre, frente a frente, facilita para esse tipo de paciente, um corpo a corpo, tendo como imagem a distância percebida por ambos, o que facilita nesse trânsito um melhor lidar com os núcleos e experiências primitivas.

Cabe uma ressalva: o divã foi usado por Freud devido ao seu desconforto que se instalava quando ficava frente a frente com seus pacientes no setting analítico. Dessa maneira, o pai da psicanálise precisou estabelecer esse modelo para ficar menos tenso, pois se sentia perturbado quando fitado ao longo de horas por dia pelos seus pacientes. Na origem da psicanálise, o setting clínico era um lugar particularmente voltado à manifestação e interpretação de palavras. Mas esse enfoque foi, com o passar do tempo, olhado de outra forma, afinal, foi percebido que também era necessário apreender o paciente em sua totalidade, ou seja, suas expressões corporais e afetivas passaram a ser valorizadas, e não só suas palavras como Freud utilizou:

“eu mantenho o conselho de fazer o paciente deitar sobre o divã, enquanto o analista fica sentado atrás dele, fora de sua vista. […] Mas ele merece ser mantido por diversas razões. De imediato por um motivo pessoal, que outros talvez partilhem comigo. Eu não consigo ser olhado por outras pessoas durante oito horas diariamente. Como eu também me abandono ao curso de meus pensamentos inconscientes, não quero que as expressões de meu rosto forneçam material para interpretações do paciente ou influenciem o que ele tem a comunicar” (Freud, 1913, p. 178-179).

É de se notar que, nesse início em que a psicanálise amadurecia, “uma gama de riquezas tais como expressão facial, olhar e tom de voz poderia passar despercebida” (PERES, 2015, p. 51), para o cenário clínico. Por outro lado, fala-se de linguagem humana em sua especificidade, na qual impera a diversidade por meios de se comunicar. Há um sentido plural de vias de trocas de comunicações, pelos quais o corpo tem suas “posturas, seus movimentos e mímicas, seus ruídos de funcionamento, as modificações de cor e de seus tegumentos, pálidos ou eritematosos; e, no campo fonatório, os gritos, os silêncios, os cantos, o riso, os suspiros, os grunhidos, etc” (GIBELLO, 1997, p. 44).

No que tange às contribuições dos autores anteriormente mencionados, percebe-se uma evolução de significados, processo no qual a psicanálise parte de dar totalidade apenas às palavras vindas do discurso do paciente. No entanto, a fala tem sim uma importância real, desde que seja endereçada a verdadeira linguagem do corpo para fazer um sentido integrado e mais expressivo, e não em uma unidade-fala separada da psiquesoma. Como demonstra Ferenczi (1930/2011, p. 63), que “as deduções teóricas”, da época, “por ouro lado extremamente penetrantes, limitam-se na medida do possível, ao aspecto puramente intelectual, ou então prendem-se diretamente ao físico, deixando de lado todo o domínio psíquico e emocional”.

Essas observações podem conduzir a veredas muito abertas de sentido e significado, porém, não há outro meio, a meu ver, a não ser arriscar a colher novos limiares que possam conduzir nossos olhares a outros elementos estabelecidos na dialética do processo. Uma vez que a fala do paciente for recuperada em análise pelo analista numa ótica da transferência, envolvendo a conhecida repetição, neste ponto, aparece uma possibilidade de restaurar os afetos primitivos dos conflitos. Como aponta Anzieu (1997, p.155), “quando de situações antigas a fala e a voz foram investidas de forma totalmente diversa do que podem parecer na situação atual da análise”; pacientes podem manifestar resistências, que foram criadas relativamente por essa angústia que estava instalada no núcleo originário, advindas de situações primitivas.

Decerto, não se sabe quando a palavra proferida pelo analista vai ressoar no interior do paciente ou escoar para bordas da não percepção corporal, isto é, a devolução pode não promover o impregnar devido, ainda assim, a sua imaturidade em poder conter para ressoar, a princípio, em uma integração, que poderá levá-lo ao processo de transformação. Dando continuidade à autora supracitada, para a qual o discurso, dentro do setting analítico, ou melhor, a enxurrada verbal vinda do paciente, pode ser recriada um estado de origem imaginária, tem-se que “a palavra do analista escorregando pelo corpo inteiro do paciente substituí o contato real e pode ajudar o paciente depressivo, a erotizar bastante o próprio corpo para revalorizar sua imagem” (Ibidem, p.156).

Desse modo, a psique para Donald Winnicott é o resultado que também opera a elaboração imaginativa das funções do corpo. Esse corpo, sendo organizado imaginativamente, é aquele corpo vivo que respira, mama, descansa, esperneia, chupa o dedo, busca algo, tem gestos, tem mudanças fisiológicas somáticas e é acalentado. Portanto, “à anatomia da ação deve ser acrescentado o significado do ato para o indivíduo, por isso, é algo significativo, em cada caso, ao indivíduo que o faz” (WINNICOTT, 1990, p. 45). Recuperando mais uma afirmação Winnicottiana de que o aprender a cuidar de um bebê se dá através da experiência e não em livros. Quando não há afeto envolvido no cuidar para compreender o bebê em seu silêncio, acontece o fracasso. Portanto,

Quanto a mim, preferiria ser antes lembrado por sustentar que entre o paciente e o analista está a atitude profissional do analista […]. Afirmo isto agora sem receio porque não sou um intelectual e na verdade […] executo meu trabalho muito mais a partir de meu eu corporal (Ibidem, p. 148).

O autor nos conduz para uma linha de pensamento na qual aponta para todo esse processo de percepção corporal, que é instalado logo no início da vida; por conta disso, na dependência absoluta, galgada no amadurecimento emocional do infante e apesar desse movimento ter um papel ativo que se faz na psique, concomitantemente, a base do self, sem dúvida nenhuma, se configura na base de um corpo vivo que, não apenas tem formas anatômicas visíveis[2], como também, vivas são suas funções. Esse é o ponto no qual, segundo a teoria Winnicottiana, parte da psique do indivíduo ocupa-se com as interações, fazendo base tanto no corpo, quanto com ele, e com os inter-relacionamentos com o mundo compartilhado (BARNABÉ, 2022, p. 21). Quero com isso dizer que Winnicott designa como elaboração imaginativa do corpo e, também, do arsenal de memórias que contribuem para a psique “ligar o passado já vivido, o presente e a expectativa de futuro uns aos outros, dá sentido ao sentimento do eu, e justifica nossa percepção de que dentro daquele corpo existe um indivíduo” (WINNICOTT, 1990, p. 46).

O florescer psicossomático é uma obtenção de forma homeopática, ou seja, acontece de maneira paulatina, tendo seu próprio ritmo e nuances singulares. A maturidade é sinônimo de saúde, e saúde é estar em um estado de amadurecer, como um movimento de ir sendo de forma tranquila. Portanto, “qualquer falha no desenvolvimento do indivíduo”, o que de certa forma pode acontecer, “é uma distorção, e um pulo aqui ou um atraso ali deixam marcas” (Ibidem). Certamente, as distorções do esquema corporal que são percebidas no analisando no processo de análise, na relação dual entre analista e analisando, têm como base estrutural a desorganização na fase primitiva do desenvolvimento e que acarretam distorções de imagens e de percepções alteradas que facilitam o adoecer físico e que se mostram em seus sintomas. Posso atrever-me aqui, trazer uma expressão cunhada por Antonin Artaud do poema Para acabar com o juízo de Deus, onde metaforicamente, ele preconiza o Corpo sem Órgãos. Quero ressaltar com essa expressão o corpo do analisando que aparece no processo de análise, muitas vezes, é notado, pelo analista, que seus próprios órgãos não têm singularidade e nem vida; pois é vazio de experiências, pois é advindo de falhas do cuidado materno no início da vida do bebê.

Em outras palavras, de forma bastante diversificada, pode ser percebido no contato terapêutico e compreendido pelo analista, o gradiente dos gestos expressivos ou não do paciente. Observa-se, então, que essa percepção de fases projetivas, isto é, onde o paciente atua com uma parte remota dele mesmo, na qual, imatura ou doente, “inclusive seus objetos danificados, passíveis, a partir desse momento, de inclusão e de tratamento por meio da interpretação” (Bolognini, 2008, p. 75). Leva-se em conta, assim, que o aparecimento do gesto corporal pode sim ser conduzido a outros parâmetros de consciência e de transformações, posto que, o tornar a expressão consciente para o analisando, pode ser, de certa forma, um marco inicial para que ele ressignifique e possa lidar de uma outra forma com a nova descoberta, passível de integração, pela validação concedida ao paciente na conduta psicanalítica. A validação e o reconhecimento por parte do outro no setting analítico é que faz toda diferença. É como o olhar da mãe para o filho que é segurado em seu colo – holding -, e seu olhar diretamente contempla e confirma sua existência. O analista exerce a mesma função nesse caso.

Como vimos, a mãe deve propiciar um agradável equilíbrio ao bebê e todo esse movimento depende de uma organização psíquica e de experiências saudáveis em todo o desenvolvimento, as quais que estarão dimensionando os aleatórios fluxos regressivos e possíveis soluções da reserva psicossomática. Para Bolognini (2008), fazer as funções materna ou paterna pode abrir cenários para o aparecimento e o enriquecimento das atividades de fantasias tão importantes para o bebê criar o mundo, tanto interno quanto externo. Ademais, as representações e sua consistência na integração servem para propiciar as funções orgânicas e a motricidade. Se todo esse equilíbrio emocional for perturbado “as relações objetais primitivas prejudica ou impede esses desenvolvimentos, podendo esclarecer, não apenas desiquilíbrios psicossomáticos precoces, como também, manifestações posteriores, na adolescência, e na fase adulta, sofrerão desses desequilíbrios” (Ibidem, p. 206). É na condução do processo analítico que esses fatores podem ser observados e trazido à tona pelo analista para a tomada de consciência do paciente de sua condição corporal.

Portanto, ao que parece, deve-se ter, sim, uma condução flexiva nesse teor dos conceitos corporais, embora, possa ser instalada uma categoria em que o foco do observar, ou seja, o olhar do analista, unicamente para as expressões corporais, seria menos ou mais importante do que os demais sentidos percebidos no andar do processo analítico, mas não privilegiando apenas o corpo. Do corpo exala satisfações e queixas, tal como, falar do corpo é visivelmente trazer o prazer à tona, e, em equivalência, as queixas resultantes de insatisfações também são mencionadas não apenas em consultórios, como se observa no dia a dia; “notadamente, os cuidados corporais que hoje tomam conta do mercado se diferem bastante dos que existiam nas últimas décadas”; a autora continua dando ênfase no cenário contemporâneo, na qual “fica evidente uma busca não mais da vida, de uma existência plena, exuberante,  mas da juventude eterna” (Peres, 2015, p.229). 

Pode ser pensado, portanto, uma inclusão entre corpo e mente, e em extensões de intensidades e acontecimentos tanto de prazer e desprazer. Assim,

O corpo, além de representar a verdade do indivíduo é também a sua vitrine. A imagem por ele exposta apresenta-se como suposta via para o sucesso ou fracasso. Diante do imperativo de permanecer sempre jovem forte, magro, bonito e com aparência saudável, muitas vezes não hesita em consumir drogas, exercícios e produtos com o objetivo de otimizar essa vitrine. Máquina que sustenta a esperança individual da vitória na guerra intermitente pela conquista da felicidade prometida pelo consumo nosso de cada dia. (Sabino, 2002, apud, Peres, 2015, p. 228).

Portanto, a psicanálise Freudiana, exploradora do inconsciente, por definição, inaugurou uma nova ordem sobre a condição do psiquismo humano, em que, o conjunto afetivo e emocional passa a ter um espaço de magnitude ímpar. Concomitantemente, apontou para um novo modelo que pondera o pensar a cultura. A escuta ampliada na forma do tratamento psicológico, nasceu do olhar freudiano na intenção de tratar as pacientes histéricas da época. Assim, a partir desse marco em que a psicanálise passa a apreciar a condição emocional do indivíduo, a afetividade ganha lugar de destaque e compreensão não apenas no pessoal, mas como também no social.

O processo psicanalítico é um surfar de pinturas infinitas que podem ser entendidas como imagens flutuantes, por parte da escuta do analista. O fenômeno que nasce desta troca do discurso do analisando, é essencial para uma possível devolução para que o paciente possa arquitetar uma compreensão desta construção de sentidos e que possam ser construídos em diferentes ângulos pelo analisando. É, portanto, um empreendimento de uma nova viagem para ambos, analista e analisando. Novas regiões no interior subjetivo, principalmente do paciente, abrem-se para serem exploradas. Mas não se pode esperar que uma totalidade de sentido venha irromper da profundidade interior daquele que a explora e nem tampouco encontrar a tragédia do acontecido em um piscar de olhos.

O gesto criador deveras presente no indivíduo analisado, vive a espera angustiada de chegar a um ponto que, muitas vezes, está distante de poder brotar. O ato de suportar essa contingência deverá ser apreendido de maneira nada fácil; pois é essa a natureza que comporta o surgimento do inconsciente na esfera terapêutica. A experiência deste acontecer prenuncia aspectos nodais do self do paciente que, desde o início do processo analítico, especulava a possibilidade de acontecer no gesto fecundo. Segundo Nosek (2017, p. 159), a existência do inconsciente, na qual pode levar o consciente à um novo acontecer clínico, acontece, “onde há ação, que possa haver o inconsciente”; e esse inconsciente psíquico não é um elemento a priori, “sua existência requer transformações complexas”. Continua o autor dizendo que as impressões, “que seja possível construir alucinoses e, depois, um pensamento sobre elas, […] aqui o analista é convidado em sua aptidão para a coragem e a entrega”; a partir dessa construção interna, pode se estabelecer uma escuta sensível.

Em resumo, a escuta psicanalítica, na medida que se entende como um encontro a dois, só é possível porque pode se preencher da escuta de um outro, o analisando. Assim,

[…] a experiência psicanalítica é representada como um contexto para a circulação de texto entre sujeitos. A psicanálise seria uma experiência entre alguém que fala e um outro que escuta, constituindo um espaço subjetivo fundado na transferência, no qual a linguagem é sua condição de possibilidade pois funda a regra fundamental dessa experiência. Com efeito, para a figura do analisante é preciso dizer tudo que lhe vem ao espírito, livre associação; para a figura do analista, a atenção flutuante (Birman, 1993, apud Mendes, 2005, p.16).

Para se envolver um pouco mais com a escuta flutuante, esta em que o analista deve deslizar, como uma onda que escorrega na superfície do mar, precisa não se prender a obstáculos concretos e nem a sistema de crenças vindas do paciente. A própria particularidade do analisando deve, em todo o seu aspecto, ser reconhecida no processo em que está submetida e que seu discurso possa ser decodificado, a fim de que possa haver a possibilidade de uma integração. Esse discurso do analisando que é circundado no setting analítico, por vezes, desconexo, é perpassado pela escuta flutuante do analista, para que a versão oficial da história contada possa ser devolvida nos termos de um rearranjo, ou seja, onde produzam rupturas nas velhas formas de ser e, com essa oportunidade, novas maneiras subjetivas desenvolvam formas criativas do viver.

Em decorrência disso, a escuta flutuante é aquela que não deixa que o analista tenha uma ideia pré-formada sobre o que emerge do analisando, nem mesmo é possível trazer conceitos que definam tal fala ou tal gesto. A escuta, como um estado silencioso, é o espaço que é oferecido ao paciente, por onde pode chegar um algo de importância tal, que aí, e só nesse ponto, o analista revela para o interlocutor o ouro revelado na transferência que, até então, não pôde ser percebido o sublime que, deveras latente, manifesta-se como um passe de mágica. Na transferência é onde o objeto escondido se manifesta e a ruptura que eclode desse lugar, empresta a característica do novo, onde uma nova ordem produz um efeito circundante, ou seja, surge um movimento, onde tudo era estático.

Não posso deixar de mencionar a importante fala de Donald Winnicott, que se refere ao processo terapêutico entre analista e analisando. Diz o autor que na condução analítica o paciente “precisa lembrar o [colapso], mas não é possível lembrar algo que não aconteceu, e esta coisa do passado não aconteceu ainda, porque, o paciente não estava lá para que ela acontecesse”; é esse o lugar-espaço no qual a função nevrálgica do manejo da transferência, que o analista autoriza um lugar que será possível lembrar o “não ocorrido” (Winnicott, 1994, p. 75). O não ocorrido foi algo que aconteceu e o infante não estava pronto para viver, posto que ainda não era um ser.

REFERÊNCIAS

ANZIEU, A. Da carne ao verbo: mutismo e gagueira. In: Psicanálise e Linguagem. Do corpo à fala (149-188). São Paulo. Casa do Psicólogo, 1997.

BALINT, M. A Falha Básica. Aspectos Terapêuticos da Regressão. São Paulo. Ed: Zagodoni, 2014.

BOLOGNINI, S. A Empatia Psicanalítica. Rio de Janeiro. Ed: Companhia de Freud, 2008.

BARNABÉ, Jr. O. A Perspectiva da Psique-Corpo na Psicanálise Winnicottiana. TCC apresentado à Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana de São Paulo, 2022.

FERENCZI, S. princípio de Relaxamento e neocatarse. In: Obras completas: Psicanálise IV. São Paulo. Ed: Martins Fontes, 2011 [1930].

GIBELLO, B. Fantasia, linguagem, natureza: três ordens de realidade. In: Psicanálise e Linguagem. Do corpo à Fala (43-104). São Paulo. Casa do Psicólogo,1997.         

Freud, S. O Início do Tratamento. In: Obras Completas. São Paulo: Cia das Letras, 2010 [1913].

MENDES, E. D. Os significantes da escuta psicanalítica na clínica contemporânea. Dissertação de Mestrado, UFUMG. 2005.

NOSEK, L. A Disposição para o Assombro. São Paulo. Ed: Perspectiva, 2017.

PERES, F. S. Cartografias do Corpo: gesto e clínica do afeto. São Paulo. Ed: Reflexão, 2015.

SAFRA, G. A Face Estética do Self. São Paulo. Ideias & Letras., 2005.

VOLICH, R. M. Psicossomática, de Hipócrates à psicanálise. São Paulo. Blucher, 2022.

WINNICOTT, D. W. A Natureza Humana. Rio de Janeiro. Imago, 1990.

_________________. Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre. Ed: ArtesMédicas, 1994.


[1] Ser, ao invés de parecer.

[2] Ibidem. Diz Winnicott em caso de anormalidade: “Muitas anormalidades físicas não são de natureza tal que um bebê possa estar ciente delas como anormalidades. […] constituí amiúde um fato que o bebê se dê conta da deformidade ou da anormalidade através da percepção de fatos inexplicáveis”.

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