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A psicanálise cura? (Release)

O conceito de cura em psicanálise

A Psicanálise cura? é uma obra peculiar, pois ela nos brinda três livros entrelaçados. O primeiro discute o conceito de cura em Psicanálise; o segundo realiza uma cuidadosa análise de diversos conceitos centrais para a teoria e para a clínica; o terceiro apresenta uma perspectiva sobre a história da disciplina, percorrendo a linha vermelha que vai de Freud a Melanie Klein e desta aos seus dois principais discípulos, Winnicott e Bion. A questão da cura é a que confere unidade à obra. O autor jamais perde de vista o seu objetivo principal, para o qual convergem tanto a discussão conceitual quanto o esboço histórico. E o conjunto, como nota com razão Tales Ab’Saber no prefácio que escreveu para o livro, constitui uma ótima introdução à Psicanálise, dirigida em especial a estudantes de Psicologia que se iniciam na matéria, mas também acessível a qualquer leitor que deseje obter um panorama geral do que fizeram Freud e alguns dos seus principais suces O autor começa lembrando que o desejo de curar está presente no âmago da obra de Freud. De fato, a Psicanálise começa como um tratamento médico, visando a erradicar os sintomas dos e das pacientes que procuravam o Dr. Freud em seu consultório: eles também desejavam se curar, colocando-se assim o “desejo de cura” nos dois pólos da dupla analítica. Esta origem como ramo da Medicina irá marcar a Psicanálise, cujo trajeto, porém, se afastou progressivamente desta raiz para constituir-se como campo autônomo de conhecimento. De modo que cabe, hoje, retomar a questão: se a Psicanálise cura, o que ela cura, e como cura? Para responder a estas perguntas, o autor se dirige aos conceitos e  à história. Para definir o que a Psicanálise cura são necessários dois movimentos complementares. O primeiro, comparativo, irá distinguir a noção psicanalítica de saúde (mental, no caso) das suas congêneres no senso comum e na Psiquiatria. O segundo mostrará que, para compreender o que Freud designa como cura – o objetivo do tratamento analítico – é necessário entender como funciona a mente e como ela pode se desarranjar, produzindo os transtornos chamados neuroses, psicoses, perversões e doenças psicossomáticas. O passo seguinte é, portanto, apresentar ao leitor uma introdução à metapsicologia  e à psicopatologia psicanalítica – de onde o “segundo” dos três livros. Isto é feito tanto para as idéias de Freud quanto para as dos outros três autores, pois o que cada um entende por cura irá obviamente depender de sua visão da gênese, do desenvolvimento e da estrutura do “aparelho psíquico”. Em outras palavras, o trabalho terapêutico será sempre guiado por uma concepção, explícita ou implícita, do que é a mente e de como ela opera, concepção que determina o modo pelo qual o analista julga possível intervir neste funcionamento, con-formando portanto o estilo interpretativo e a postura geral em relação à clínica de cada uma dessas grandes tendências da Psicanálise. Assim, o leitor pode acompanhar a rede de conceitos que serve de fundamento à prática de cada autor – a idéia de pulsão em Freud, a idéia das ansiedades fundamentais em Klein, o self em Winnicott, etc. De cada um desses eixos, partem por assim dizer elementos derivados, cuja conexão com o tronco central é evidenciada por nosso autor com clareza exemplar. Ao falar de Freud, por exemplo, Girola nos conduz da teoria sobre os instintos aos processos primário e secundário, às diferentes arquiteturas da mente a que chamamos tópicas, ao tema da repetição, e assim por diante. O mesmo vale para o estudo de Klein (a fantasia inconsciente, as angústias persecutória e depressiva e as respectivas “posições”, os mecanismos básicos de defesa), para o estudo de Winnicott (o self e as ameaças que o circundam, o papel facilitador ou não do ambiente, as idéias de espaço potencial e de objeto transicional) e para o breve porém muito esclarecedor estudo de Bion (da sua preocupação com a “turbulência emocional” aos conceitos de continente/contido, sua teoria sobre o pensar, seu método clínico tão original). Mesmo esta rápida enumeração dos tópicos abordados no livro basta para dar uma idéia da sua utilidade para aqueles que se iniciam na Psicanálise, ou mesmo para quem deseja fazer uma rápida revisão de algum ponto da teoria. O autor tem o mérito de saber onde parar na abertura das trilhas paralelas. Ele nos explica as noções de que precisamos para compreender aquelas outras, e retorna com segurança ao tema principal, evitando digressões sem fim nascidas quer da incapacidade de síntese de quem escreve, quer da vontade de impressionaria com o que só se pode chamar de “erudição ornamental”. Seu objetivo é “compreender o que a Psicanálise cura, e como cura”. Para isso é levado a comparar as idéias de doença, saúde e cura provenientes do “senso comum” e da Psiquiatria com aquelas da Psicanálise. Aqui, a formação clássica do autor – nascido e educado na Itália, bacharelado em Teologia pela Pontifícia Universidade Laterana de Roma e em Filosofia pela UNISAL – lhe sugere referências muito interessantes a certos elementos entranhados nas idéias correntes sobre doença e saúde, que têm sua origem na visão religiosa da moléstia como maldição divina, e como desordem moral. Estas concepções religiosas infiltram, sem que percebamos, a visão racionalista, veiculada pela Medicina,  da doença e da saúde como fenômenos exclusivamente corporais, e remetem a um novo tipo de milagre: a possibilidade de “remover” o sofrimento mental pela via dos anti-depressivos, ansiolíticos e similares. Por trás de fatos científicos relevantes – como a descoberta dos neurotransmissores, ou a provável localização em certas áreas cerebrais da base física para determinados transtornos psíquicos – se insinuam conclusões ideológicas que alimentam a ilusão contemporânea por excelência: a de que o sujeito não é mais agente e foco originador dos seus atos, portanto responsável por eles, mas na essência m organismo bio-químico destinado a consumir o que a indústria lhe apresenta. Um outro aspecto importante desse pequeno grande livro é a relação de continuidade que estabelece entre Freud e seus sucessores. Ao mesmo tempo em que explica claramente no que são diferentes, Girola mantém firmemente em mãos os diversos fios que unem entre si as teorias que nos apresenta –  de filiação, é claro, mas também de diálogo. Avançando na leitura, compreendemos no que consistem os fatores comuns das diferentes correntes: as noções de inconsciente dinâmico e da necessidade de erigir defesas contra impulsos e angústias – o que situa no âmago de todas elas a idéia de um conflito psíquico inescapável -; a visão, no essencial compartilhada, sobre o que é e como trabalha a mente humana; a postura ética assentada sobre a neutralidade e a renúncia à pretensão de ser o guru do paciente; a atenção às modalidades da transferência e o uso característico da interpretação que daí decorre. Para concluir, uma menção à bibliografia de que se serve Girola. Ela vai agilmente dos clássicos ao atual, de Susan Isaacs a Laplanche e Pontalis, de Kohut a Nicole Zaltzman, de Santa Teresa de Lisieux a um artigo da revista Veja. O leitor é assim apresentado a alguns dos principais comentadores psicanalíticos, aprendendo com eles a ler os escritos fundamentais e a discernir toda a sua riqueza. Não é pouco, nestes dias de espessa ignorância em que o trabalho de entender é considerado inútil ou cansativo, porque seu ritmo não é do clipe de televisão, e sim o da paciente travessia de argumentos por vezes complexos. Enfim, este livro nos oferece uma mão amiga, que nos conduz com amabilidade neste passeio ao território sempre interessante da Psicanálise.
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