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Psicanálise

Self (Winnicott)

Self Winnicott
© Roberto Girola-(Junho 2000)

Índice dos conteúdos

Introdução

O objetivo deste trabalho é focalizar algumas abordagens do conceito de self (ou si-mesmo) e, a partir de uma análise sucinta dos desafios que a formação do self enfrenta hoje, compará-las com a perspectiva da psicanálise winnicottiana. Gostaria de iniciar com um rápido panorama que nos permita identificar diferentes conotações da noção de self, para depois ver em que sentido o self do homem contemporâneo é ameaçado e finalmente analisar a contribuição da abordagem de Winnicott, em sua especificidade.
Do ponto de vista filosófico, o conceito de self está de alguma forma relacionado ao conceito de identidade. Charles Taylor traça no livro As fontes do self um panorama abrangente sobre as raízes que levam à construção da identidade moderna. Não caberia na limitação deste trabalho uma análise detalhada desta obra [1]. No entanto, parece-me interessante levantar, a partir das considerações deste autor, um elemento que tem sido considerado por muito tempo como fundante na constituição da identidade humana e que é hoje posto em discussão no contexto cultural contemporâneo. Refiro-me à crise das metanarrativas, para usar uma terminologia empregada pela corrente pós-moderna. Por trás desta crise encontramos uma postura que tende a negar a possibilidade de uma fundamentação da ética no sentido clássico e, portanto, um questionamento sobre a possibilidade de se estabelecer um fundamento para a própria identidade humana. Como observa Taylor, surge uma desconfiança em relação aos grandes ideais, advinda da constatação foucaultiana de que elevados ideais éticos e espirituais costumam entrelaçar-se com exclusões e relações de dominação. Tais narrativas são importantes, pois representam um ponto de referência sobre o qual, por muito tempo, se moldaram as representações ligadas à identidade do homem (sobretudo no Ocidente). O autor constata que foi justamente a sensação de que os hiperbens (ideais supremos) podem sufocar-nos ou oprimir-nos, que levou à revolta naturalista contra a religião e a moralidade tradicionais, pondo assim em crise elementos que por muitos séculos foram considerados como fundantes para a identidade humana. Se for verdade que “os mais elevados ideais e aspirações espirituais também ameaçam impor as cargas mais esmagadoras à humanidade”,[2] podemos perguntar em que sentido esses cálices envenenados – para usar uma expressão do próprio Taylor – poderiam contribuir, de fora para dentro, para a constituição do self. Ou será que o self só pode ser construído de dentro para fora? Neste caso, como acontece essa construção? Ainda, o self é uma criação essencialmente individual ou esta criação responde de alguma forma, a um roteiro pré-definido, a uma ordem universal de essências? E, poderíamos acrescentar, o self tem algo a ver com o caráter, com a personalidade moral de uma pessoa? Vamos por enquanto deixar em suspenso essas questões, para retomá-las no fim do nosso trabalho.
Em Hegel, o conceito de self se funde com aquele de autoconsciência: “a consciência primeiro encontra a si mesma na autoconsciência (…) seu ponto crítico, onde ela deixa o espetáculo colorido do imediato sensível, sai do vazio escuro do supra-sensível transcendente e remoto, e entra para a luz diurna espiritual do presente” (Fenomenologia do Espírito)[3]. Para William James o self se desdobra, sendo em parte objeto e em parte sujeito: “o meu self total, como se fosse duplo, em parte conhecido e em parte cognoscente [sic], deverá ter dois aspectos distintos que (…) podemos chamar um mim (me) e o outro eu (I)”(Compêndio de Psicologia).[4] Estas primeiras definições nos mostram o self como a função psíquica que permite ao indivíduo de se dobrar sobre si mesmo, favorecendo a consciência de si mesmo, um conceito que, embora não seja usado aqui no sentido estritamente freudiano, de certa maneira, pode ser aproximado ao conceito de ego.
Norbert Wiley apresenta no seu livro O self semiótico, uma concepção mais sofisticada.[5] Desenvolvendo conceitos já abordados por C. S. Peirce e G. H. Mead, ele chega à conclusão que o self combina “as tríades temporal, semiótica e dialógica”. Isto quer dizer que o self, no plano dialógico, se desdobra num eu que dialoga consigo mesmo (você), e que tem como referência um mim. No plano temporal, o self representa uma mediação em que essas três conotações se relacionam respectivamente no presente, no futuro e no passado. No plano interpretativo, o self se desdobra no signo, no intérprete e no objeto, três dimensões semióticas que se relacionam (respectivamente) com as outras.
Os seres humanos são uma tríade de tríades e, além disso, as três se fundem em uma só. Enquanto fundidas, irei referir-me a elas, de uma maneira dialógica abreviada, como eu, você, mim, embora os nomes mais precisos sejam eu-presente-signo, você-futuro-intérprete e mim-passado-objeto. Os seres humanos não são nenhum dos três (ou nove). São os três juntos, incluindo tanto os elementos como as relações entre esses elementos. Os homens consistem em presente, futuro e passado; signo, intérprete e oeto; eu, você, mim; e todas as sobreposições, e capacidade de conexão, e solidariedade entre esses elementos.[6]
Citei este autor porque introduz o conceito de self que atua como elemento que integra várias instâncias do ser humano. No plano da estrutura temporal humana, ele integra o passado o presente e o futuro, uma dimensão particularmente interessante para as considerações que serão feitas a seguir. Da mesma forma, a introdução do self como estrutura semiótica é interessante porque projeta as atividades do self no campo simbólico, um campo que, como sabemos, é importante para a Psicanálise. Por sua vez, a estrutura dialógica do self, introduz um diálogo interno entre diferentes instâncias da psique. Isto não somente permite o desdobramento do eu sobre si mesmo, mas também introduz uma instância do eu, o mim, que garante a continuidade objetiva, representando, em sua rigidez de objeto, um referencial quase superegóico, para usar uma terminologia psicanalítica.

O conceito de self na Psicologia Analítica de Jung [7]

Na Psicologia Analítica o termo indica o conjunto dos fenômenos psíquicos de um indivíduo. Por um lado o self integra os objetos da experiência, percebidos pela consciência, com os fatores que ainda permanecem inconscientes. Jung, no decorrer de sua obra, dá várias definições de self. Pieri as agrupa em doze categorias.[8]
  1. Si-mesmo como lei moral do indivíduo. Neste sentido, se contrapõe ao superego, que Jung define como lei geral. [9] O ego pode estar em conflito tanto com o superego como com o self. O conflito do ego com a lei moral do si-mesmo gera um
  2. senso de inferioridade, que o si-mesmo tende a compensar na sua constante busca de equilíbrio, que resulta numa ampliação da personalidade, mediante a inclusão dos elementos inconscientes. Para Jung a consciência moral e a consciência de si são equivalentes e estão à base do processo de individuação e, portanto, do processo da análise. Criticando o intuito adaptativo à realidade cultural da psicanálise freudiana, Jung afirma que, por trás do homem, não temos a lei moral e tampouco a opinião pública, mas uma individualidade da qual ele é ainda inconsciente. Este substrato inconsciente é justamente o self, do qual o ego é o expoente na consciência. O ego se relaciona ao si-mesmo como o objeto ao sujeito: “como o inconsciente, o si-mesmo é o ser a priori do qual emana o eu” (p. 653). “Enquanto inconsciente o si-mesmo corresponde ao superego freudiano” (p. 653), mas, uma vez liberado das projeções, ele deixa de coincidir com as opiniões dos outros e nos põe em contato com nosso verdadeiro eu. Neste sentido, afirma Jung, “o si-mesmo opera como unio oppositorum [união dos opostos], dando lugar à mais direta experiência do divino psicologicamente concebível” (p. 653).
  3. O si-mesmo, o como estado psíquico, resulta na alienação de si, na realização de si ou, paradoxalmente, na renuncia de si (que supõe, porém, a aceitação de si).
  4. O si-mesmo relacionado com o processo psíquico, resulta num conceito que se entrelaça com o anterior, no âmbito da gradual diferenciação das funções psíquicas.
  5. O si-mesmo como eu objetivo: nesta acepção, o self indica aquilo que o indivíduo é realmente, em oposição ao conceito de persona, ou seja, ao seu papel social (a persona é uma espécie de máscara que o indivíduo veste para se relacionar com o contexto social).
  6. O si-mesmo como fator subjetivo, regido pela antinomia si-mesmo/mundo, torna possível a consciência da relação sujeito/objeto, que supõe uma polarização e o afastamento do objeto. Neste sentido o self constitui a consciência do sujeito, que se contrapõe ao eu. A verdadeira tarefa da terapia é ajudar o eu a encontrar o si-mesmo.
  7. O si-mesmo como uma estrutura psíquica totalizante proporciona a integração de todo o psiquismo, permitindo a passagem da fragmentação para a unidade.
  8. O si-mesmo relacionado ao inconsciente coletivo. Apesar de representar a essência da individualidade, o self, por estar vinculado ao inconsciente, é também relacionado à construção do universal, do coletivo. Nos sonhos, em particular, o si-mesmo entra em contato com o inconsciente coletivo, que é a base do inconsciente individual e, portanto, do próprio self.
  9. O si-mesmo como relação homem/mundo é o resultado da integração daquilo que é interno com aquilo que é externo e, ao mesmo tempo, daquilo que é consciente com aquilo que é inconsciente, sendo, portanto, “a meta da vida”.
  10. O si-mesmo como diferenciação originária é relacionado com a diferenciação originária entre sujeito e objeto.
  11. O si-mesmo e a integração psíquica. Em oposição ao fenômeno de cisão psíquica, o self está por trás do processo que integra os elementos conscientes e inconscientes do psiquismo humano, no plano do conhecimento e da ação.
  12. O si-mesmo como união dos opostos representa a reunificação paradoxal dos opostos. Neste sentido, é considerado o símbolo da tendência à unidade da psique. Esta união, contudo, não deve ser considerada como uma síntese, e sim uma coniunctio, uma conjunção na qual convergem consciente e inconsciente, luz e sombra, individual e coletivo, sujeito e objeto, corpo e psique, etc. Isto significa que a totalidade do homem é paradoxal e somente pode ser descrita a partir de antinomias.

O conceito de self na Psicanálise

Em Freud a palavra self (das Ich) é usada com conotações diferentes, como observa o tradutor da versão inglesa das obras de Freud.
“Parece possível detectar dois empregos principais: um em que o termo distingue o eu (self) de uma pessoa como um todo (incluindo, talvez, o seu corpo) das outras pessoas, e outro em que denota uma parte específica da mente, caracterizada por atributos e funções especiais (o grifo é meu). Foi neste segundo sentido que ele foi utilizado na elaborada descrição do ‘ego’ no primitivo ‘Projeto’ de Freud, de 1895 (Freud, 1950a, Parte I, Seção 14), e é neste mesmo sentido que é empregado na anatomia da mente, em O Ego e o Id. Em algumas de suas obras intervenientes, particularmente em vinculação ao narcisismo, o ‘ego’ parece corresponder sobretudo ao ‘eu’ (self). Nem sempre é fácil, contudo, traçar uma linha entre esses dois sentidos da palavra”.[10]
Na teoria psicanalítica, somente mais recentemente o conceito de self foi adquirindo umaconotação mais definida.[11] Kohut resume estes avanços no prefácio do seu livro Análise do self.
Um avanço aparentemente simples, mas pioneiro e decisivo, na metapsicologia psicanalítica, a separação conceitual entre self e ego (Hartmann); o interesse na aquisição e na manutenção de uma ‘identidade’, bem como nos perigos aos quais este conteúdo mental (pré-)consciente é exposto (Erikson); a gradual cristalização de uma existência psicobiológica separada, fora da matriz da união de mãe e criança (Mahler); e algumas detalhadas e importantes contribuições clínico-teóricas (Jacobson) e clínicas (A. Reich) formuladas psicanaliticamente nos últimos anos – todo esse trabalho atesta o crescente interesse dos psicanalistas por um assunto que tendia a ser lançado para o segundo plano pelo farto material que contribuiu para a investigação do mundo dos objetos, isto é, para as vicissitudes dinâmicas e evolutivas das imagos, ou (…) das representações dos objetos.[12]
Para Kohut, as noções de self, ego, id, superego, personalidade e identidade refletem conotações conceituais diversificadas.[13] Ego, id e superego representam, na linguagem psicanalítica, uma conceituação abstrata do aparelho psíquico, portanto uma noção distante da experiência. Já o self representa uma abstração mais próxima à experiência, pois se trata de “uma estrutura dentro da mente”, catexizada com energia instintiva e com continuidade no tempo.[14] Para este autor, “representações do self estão presentes não somente no id, no ego e no superego, mas também dentro de uma única instância da mente”.[15] Neste sentido, podem existir, lado a lado, representações contraditórias do self. “O self, assim, bastante análogo às representações de objetos, é um conteúdo do aparelho mental, mas não é um dos seus constituintes, isto é não é uma das instâncias da mente”.[16] Não fica claro, contudo, como o self, sem ser um constituinte do aparelho mental possa se tornar um organizador das atividades mentais, como o autor afirma mais adiante.[17]
Ao self são atribuídas as representações de si. Como observam Gedo e Goldberg,[18] trata-se de uma organização psíquica permanente que exerce uma influência dinâmica sobre o comportamento, como já foi pontuado por Kohut. Tais representações constituem um sistema de lembranças que não podem ser confundidas apenas com simples conteúdos mentais, e também não são simples percepções registradas na memória (relação com o passado), mas, “em virtude de seus duráveis efeitos dinâmicos”, devem ser compreendidas como uma realidade concreta, a personalidade organizada como um todo.[19] A noção de self, portanto não pode ser confundida em Psicanálise com a noção de ego, que é um conceito estrutural do aparato psíquico ligado à segunda tópica freudiana, cuja função é mediar as exigências do id, do superego e da realidade.[20]

O self ameaçado

Em sua análise sobre os fenômenos culturais e estéticos que caracterizam a “condição pós-moderna”, David Harvey,[21] observa que eles dependem da maneira mutável como tempo e espaço são percebidos, no fluxo da experiência humana. Levando em conta que esta é uma dimensão que se relaciona a uma função importante do self, como foi observado acima, parece-me importante analisar mais de perto as observações deste autor. O que caracteriza a nossa época, na opinião de Harvey, é uma compressão da noção de tempo-espaço, que ele relaciona com a tendência à superacumulação de bens e a uma aceleração do consumo iniciada no final dos anos 60. Para o homem contemporâneo, em poucas décadas, o tempo se encurtou e o espaço se estreitou. Ao lado de uma crescente concentração financeira, ocorreu uma descentralização dos centros de produção, acompanhada por uma nova concepção que tende a reduzir os tempos de giro em vários setores da produção.[22] Tudo isso levou a “uma intensificação dos processos de trabalho e uma aceleração na desqualificação e requalificação necessárias ao atendimento das novas necessidades do trabalho”.[23] Paralelamente, a aceleração na produção levou à aceleração na troca e no consumo de bens, aumentando consideravelmente a velocidade de circulação das mercadorias. Tudo hoje tende a acontecer on-line, as distâncias se encurtaram, os tempos se reduzem cada vez mais.
Por outro lado, observa Harvey, esta aceleração influencia de maneira determinante a maneira de pensar, ser e agir do homem contemporâneo. “A primeira conseqüência importante foi acentuar a volatilidade e efemeridade de modas, produtos, técnicas de produção, processos de trabalho, idéias e ideologias, valores e práticas estabelecidas”. Um primeiro sentimento, portanto, invade o homem moderno, a difusa sensação de que tudo é volátil, efêmero e, pior ainda, descartável. Esta sensação é ainda mais intensa se observarmos o mercado financeiro, cada vez mais dominado por capitais fictícios numa ciranda que resiste ao discurso onipotente dos economistas e traz cada vez mais à tona uma sensação de profunda aleatoriedade sobre a qual parece repousar a economia mundial. Harvey dedica a esta análise o último capítulo de seu livro, cujas conclusões não vêm ao caso.
Ligado a este fenômeno, observa Harvey, temos, por outro lado, a manipulação do gosto e da opinião, numa verdadeira manipulação do desejo, acompanhada por uma aceleração na produção dos signos, que alimenta a insaciável indústria cultural.[24] Como já examinei com mais profundidade num outro trabalho,[25] ao lado da inflação de signos, temos um esvaziamento de significados, pois o símbolo tem cada vez menos a função de remeter a um significado e passa a ter muito mais um foco em si mesmo, adquirindo valor de simulacro e impondo, aos poucos, uma verdadeira ditadura do significante e uma sensação geral de vazio.[26] Trata-se de uma situação que, como aponta Jameson, se refazendo ao conceito lacaniano de esquizofrenia como desordem lingüística, representa uma “esquizofrenia na forma de um agregado de significantes distintos e não relacionados entre si”.[27] Seus efeitos psíquicos são desastrosos, pois, se a identidade pessoal supõe “uma unificação temporal do passado e do futuro com o presente que tenho diante de mim”, o esvaziamento do discurso remete a uma incapacidade de “unificar o passado, o presente e o futuro da nossa própria experiência biográfica ou vida psíquica”.[28] Com o colapso da cadeia significativa, a experiência se reduz a “uma série de presentes puros, não relacionados no tempo”.[29] Como observam Deleuze e Guattary, “nossa sociedade produz esquizofrênicos da mesma forma como produz o xampu Prell ou os carros Ford, com a única diferença de que os esquizofrênicos não são vendáveis”.[30]
As novas Tecnologias da Informação (TI), por sua vez, trouxeram um cenário completamente novo, fascinante e ameaçador. Numa recente entrevista concedida à revista Veja, o psicólogo americano Larry Rosen, considerado um especialista no estudo da relação do homem com a tecnologia, faz algumas considerações interessantes.[31] Ele observa: que nunca as pessoas tiveram acesso a tanta informação. De acordo com as estatísticas, o volume de informações disponíveis dobra a cada 72 dias. Tudo isso gera uma situação de estresse. De certa forma, as observações de Rosen remetem à compressão da noção de tempo-espaço de Harvey, quando observa que a velocidade da tecnologia está alterando a nossa percepção do tempo e nos leva a viver num constante estado de alerta, que gera ansiedade e nervosismo, uma situação psíquica que ele caracteriza como tecnostress. De acordo com Rosen, os limites entre trabalho e lazer tornam-se cada vez menos claros. Ocorre, eu diria, uma quebra de barreira entre interioridade e exterioridade. Os objetos do mundo externo são percebidos cada vez mais como invasivos. Ao mesmo tempo, o homem moderno torna-se cada vez mais dependente da tecnologia, gerando uma situação neurótica, que Rosen chama de tecnose.

A doença do self, um desafio para a atual clínica psicanalítica

Na linha psicanalítica, Gilberto Safra faz uma interessante análise das repercussões da cultura contemporânea sobre o psiquismo.[32] Para este autor, o mundo atual apresenta problemas e situações que levam o ser humano a adoecer em sua possibilidade de ser, levando-o a viver fragmentado, descentrado de si mesmo, impossibilitado de encontrar, na cultura, os elementos e o amparo necessários para superar suas dificuldades psíquicas. De acordo com sua experiência clínica, no consultório as queixas mais freqüentes seriam referidas “à vivência de futilidade, de falta de sentido na vida, de vazio existencial, de morte em vida”.[33] Para uma psicanálise acostumada à escuta do desejo, que aflora nos sonhos e se faz presente nos sintomas e no discurso, através dos mecanismos de recalque, deslocamento e condensação, surge um novo desafio: pacientes que nem mesmo se constituíram em sua possibilidade de desejar. Com tais pacientes, observa Safra, e necessário “constituir os aspectos fundamentais do seu self, que até então ficaram sem realização”.[34] E continua: “Mais do que um processo de deci-framento [sic] das produções do paciente, há uma apresentação do self em gesto e em formas imagéticas (formas sensoriais) [em nota o autor esclarece tratar-se de imagens sonoras, visuais, gustativas, tácteis] sustentados pela relação transferencial, na qual o indivíduo se constitui e se significa frente ao outro”.[35] Como observa Safra, percebe-se em tais pacientas uma “fome de amor”, de uma experiência do si-mesmo que possibilite o surgir da subjetividade humana.

A emergência do self na perspectiva psicanalítica de Winnicott

Como veremos a seguir, Winnicott, ao analisar o desenvolvimento primitivo do bebê, considera fundamental o encontro entre o mundo interno do bebê e o mundo externo, mediado pela figura materna, num contexto que ele denomina de ilusão. O fenômeno da ilusão faz com que a criatividade originária do bebê (ou do paciente) coincida com a percepção objetiva, num encontro entre objeto da realidade e objeto subjetivo. Safra denomina esta experiência como uma situação de qualidade estética, através da qual “o indivíduo cria umas formas imagéticas, sensoriais, que veiculam sensações de agrado, encanto, temor, horror, etc…”.[36] Na presença de um outro significativo (figura materna ou analista), essa experiência faz com que o self se constitua, permitindo que a pessoa possa existir no mundo. Para que o eu possa se constituir e se tornar apto ao encontro com o não-eu (mundo externo), é necessária a mediação de uma mãe suficientemente boa, capaz de oferecer o mundo externo ao bebê, na medida em que o bebê se torna capaz de contê-lo, ou melhor, para usarmos a terminologia winnicottiana, de criá-lo.
O bebê nasce, na concepção winnicottiana, com uma estrutura sélfica que é pura potencialidade, uma tendência à integração, mas para que essa tendência se realize é fundamental a presença de um ambiente favorável.[37] Em “Desenvolvimento emocional primitivo” (1945), Winnicott se pergunta em que época começam a ocorrer coisas importantes para a formação do bebê. Embora não descarte a possibilidade que existam fatores importantes desde a concepção do bebê, ele acredita que, de fato, podemos inferir a primeira experiência importante somente a partir do nascimento, considerando as diferenças existentes entre bebês prematuros e bebês pós-maduros. É “ao final dos nove meses de gestação, [que] o bebê se torna maduro para o desenvolvimento emocional”.[38] O desenvolvimento primitivo do bebê, na fase inicial, até os cinco meses, “é vitalmente importante: (…) aí se encontra o esclarecimento na psicopatologia da psicose”.[39
Inicialmente, o ser humano parte de um estado de não integração (no integration): não conhece o ambiente, não tem noção de tempo e espaço e não tem a noção do eu.[40] Trata-se de uma “capacidade inata que todo ser humano tem de se tornar não-integrado, despersonalizado e de sentir que o mundo é irreal”.[41] Nesta fase, corpo e psique ainda não se integraram, o corpo é percebido como externo.[42] A não-integração produz uma série de fenômenos de dissociação, que, no bebê, são absolutamente normais, fazendo com que ele não identifique uma continuidade entre o bebê que dorme e o bebê acordado, entre a mãe que cuida e mãe, cujo poder, que está por trás dos seios, ele quer destruir.[43] A tendência a se integrar é ajudada por dois conjuntos de experiências: os cuidados maternos, que se concretizam nas experiências que envolvem a manipulação do bebê (handling) e a sua sustentação/contenção (holding), e também nas “experiências pulsionais agudas, que tendem a tornar a personalidade uma a partir do interior”.[44]
Para Winnicott, a psique individual só pode ter início num determinado setting, a partir do qual o indivíduo pode criar um meio ambiente pessoal, que, sucessivamente, se tudo correr bem, se transforma em algo semelhante ao meio ambiente percebido e, desta forma, o indivíduo passa da dependência à independência.[45] Nesta fase, se o meio-ambiente for invasivo, ou seja, se não houver uma adaptação ativa do meio às necessidades da criança, ocorre “uma distorção psicótica da organização meio-ambiente indivíduo” e uma perda de sentido de self, que só é recuperado por um retorno ao isolamento.[46] Naturalmente, para que se instaure uma organização defensiva como repúdio à invasão ambiental, é necessária uma seqüência de experiências percebidas pelo bebê como invasivas. No caso do processo de adaptação ser bem sucedido, observa Winnicott, o bebê começa a ter alguma noção de tempo, por começar a lidar com experiências em que o ambiente externo é experimentado de forma processual, numa seqüência de eventos.[47]
Gostaria de esclarecer que, no decorrer de nosso estudo, vamos falar freqüentemente de cuidados maternos e de mãe; Winnicott acredita de fato que a figura materna (ou de alguém que a represente de forma estável e consistente) seja fundamental nesse processo, cabendo ao pai a função de garantir a qualidade do setting que envolve inclusive a mãe. Acredito, contudo, que o cuidado materno possa incluir os cuidados do pai, exercendo neste caso a função materna. Desde que se trate de uma experiência agradável não invasiva para o bebê, nada muda com relação à teoria de Winnicott, embora ele observe que o processo “fica imensamente simplificado, se apenas uma pessoa cuida do bebê, usando apenas uma técnica” (cf. “Desenvolvimento emocional primitivo”, p. 279).
Potencial criativo e elemento feminino na constituição do self
Na teoria winnicottiana fruto de longos anos de consultório e de contato com pacientes adultos e crianças, inclusive psicóticos, alguns conceitos adquirem particular importância no processo de formação do self. Trata-se das noções de primeira mamata teórica, criatividade, elemento feminino e elemento masculino, experiência da ilusão e objeto transicional. Gostaria de abordar de maneira resumida esses conceitos para compreender como eles se articulam na formação do self.
A primeira alimentação teórica e a experiência da ilusão
A primeira alimentação teórica é uma experiência que surge a partir de uma necessidade do bebê (Winnicott prefere usar o termo necessidade ao termo impulso), que gera nele um estado de prontidão, ligado à sua criatividade primária, predispondo-o à alucinação. Uma mãe devotada,[48] a partir de seu amor e de sua profunda identificação com o bebê (e isto é favorecido por um setting adequado), ao fornecer algo que o bebê espera, na hora certa, favorece a experiência da ilusão. A mãe, portanto, exerce a tarefa de proteger o bebê em relação ao mundo externo, fornecendo “o pedacinho simplificado de mundo que a criança, através dela, passa a conhecer”.[49] O momento da ilusão é “uma experiência que o bebê pode tomar, ou como alucinação sua, ou como algo que pertence á realidade externa”.[50] No estado mais primitivo, “o objeto se comporta de acordo com as leis mágicas, isto é, existe quando é desejado” e desaparece quando não é desejado. Podemos dizer, portanto, que tudo o que é objetivamente percebido foi antes subjetivamente concebido no espaço da ilusão.[51] Trata-se de um paradoxo, o bebê cria o objeto, mas este não teria sido criado como tal se já não se encontrasse ali, graças a uma provisão ambiental suficientemente boa. Para entendermos o que isto significa, é necessário aprofundar o conceito de criatividade.
Criatividade, elementos masculinos e elementos femininos, importância do brincar
A criatividade, na perspectiva winnicottiana, está relacionada “com a abordagem do indivíduo à realidade externa” e é definida pelo ingresso criativo do indivíduo na vida, ligado à primeira abordagem criativa dos objetos externos.[52] Podemos portanto falar de uma criatividade primária, cujo desenvolvimento depende do meio-ambiente. Winnicott estabelece uma diferença nas relações de objeto, caracterizada por um relacionamento que transita entre os elementos masculinos e femininos, entre o relacionamento ativo e o relacionamento passivo. Isto vai nos ajudar a perceber em que sentido é fundamental para o desenvolvimento do self a experiência da criatividade originária. Na sua relação com o seio materno, o bebê transita entre duas experiências, uma ligada ao impulso instintivo que o leva a satisfazer sua necessidade, e outra ligada ao próprio seio, que possibilita ao bebê de “tornar-se o próprio seio (ou a mãe), no sentido que o objeto é o sujeito”.[53] A criatividade é exercida no âmbito dos elementos femininos, na criação do objeto subjetivo, que é o objeto que ainda não foi repudiado como um fenômeno não-eu.
Aqui, nesse relacionamento do elemento feminino puro com o ‘seio’, encontra-se uma aplicação prática do objeto subjetivo, e a experiência a esse respeito abre caminho para o sujeito objetivo [o grifo é meu], isto é, a idéia de um eu (self) e a sensação de real que se origina do sentimento de possuir uma identidade.[54]
Portanto o sentimento de eu, o self, cresce somente na medida em que é experimentado um relacionamento baseado no sentimento de ser, baseado numa identificação primária em que objeto e sujeito são um. “Tanto a identificação projetiva quanto a introjetiva originam-se dessa área em que cada um é o mesmo que o outro” e é a partir dessa relação de objeto do elemento feminino puro que se estabelece a experiência de ser. [55] “Em contraste, a relação de objeto do elemento masculino com o objeto pressupõe uma separação” que marca o surgir do objeto não-eu, do objeto objetivado, uma relação que já supõe uma organização mental mais estruturada.[56] A relação de objeto baseada no elemento feminino é focalizada no ser, aquela baseada no elemento masculino, no fazer. Evidentemente, nesta perspectiva, os elementos masculinos e femininos estão presentes tanto nos homens como nas mulheres. Evidentemente, uma mãe ansiosa, preocupada em “fazer” suas obrigações maternas, corre o risco de não possibilitar ao bebê esse encontro com o próprio ser, que o constitui como self.
Na experiência da criatividade e na constituição do self, adquire particular importância o brincar. De fato é no brincar que o indivíduo pode ser criativo e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self).[57] Neste sentido, Winnicott exclui que o self possa ser encontrado de outra forma.
O eu (self) realmente não pode ser encontrado no que é construído com produtos do corpo ou da mente, por valiosas que essas construções possam ser em termos de beleza, perícia e impacto. Se o artista, através de qualquer forma de expressão está buscando o eu (self), então pode-se dizer que, com todas a [sic] probabilidade, já existe um certo fracasso para esse artista no campo do viver criativo. A criação acabada nunca remedia a falta subjacente do sentimento do eu (self).[58]
Para Winnicott a experiência do brincar não pertence só à criança, mas está ligada a qualquer atividade em que a criatividade primaria busca expressão, inclusive na análise.
“(…) o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde; o brincar produz os relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação na psicoterapia; finalmente a psicanálise foi desenvolvida como uma forma altamente especializada de brincar, a serviço da comunicação consigo mesmo e com os outros. “[59]
Para que o brincar aconteça é necessário um espaço potencial entre o bebê e a mãe (ou o paciente e o analista), um espaço que se situa entre o mundo interno e o mundo externo;[60] somente neste espaço é possível experimentar a amorfia, uma experiência que remete “a um estado não-intencional, uma espécie de tiquetaquear (…) da personalidade não integrada”.[61] No brincar, o mundo pode ser construído e destruído, pois envolve o mundo interno e externo e os funde. Mais uma vez, contudo, é necessária a experiência de um meio-ambiente adequado, suficientemente bom, para que possa acontecer uma forma de comunicação criativa que constitui a experiência do self.[62]
Espaço potencial e objetos transicionais
É no espaço potencial da ilusão que se articulam as experiências com os objetos transicionais. O objeto transicional situa-se numa área intermediária de experimentação entre o objeto subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido.[63] Não é raro perceber a importância desses objetos transicionais (um ursinho de pelúcia, uma fraldinha, um cobertor, etc.) nos primeiros anos de vida da criança. De acordo com as observações de Winnicott, o padrão dos fenômenos transicionais começa a surgir dos quatro aos doze meses de idade. Este padrão, estabelecido na tenra infância, pode persistir no decorrer da infância, de maneira que a criança continua a precisar de um determinado objeto (geralmente macio), para acalmar sua ansiedade. Aos poucos, na medida em que o bebê começa a dominar os sons, esse objeto adquire um “nome”, freqüentemente significativo, pois está de alguma forma relacionado ao mundo adulto. No entanto, Winnicott alerta que, em determinados casos, pode não existir um objeto transicional à exceção da própria mãe.[64]
O objeto transicional é importante porque representa, na mente da criança, o objeto da primeira relação (geralmente o seio materno). A relação com esse objeto é uma fase intermediária, que precede o teste da realidade, pois nela, o bebê passa do controle onipotente (mágico) do objeto subjetivo para uma forma de controle que envolve a manipulação. O objeto transicional supõe um setting específico, a área da ilusão, uma área que se situa “entre a criatividade primária e a percepção objetiva baseada no teste da realidade”.[65] Neste sentido os fenômenos transicionais “representam os primeiros estádios do uso da ilusão, sem os quais não existe, para o ser humano, significado na idéia de uma relação com um objeto que é por outros percebido como externo a esse ser”.[66] Trata-se de objetos que se situam numa área neutra de experimentação, onde mundo interno e mundo externo se sobrepõem. Uma fase necessária para que possa acontecer a passagem para a desilusão, uma experiência geralmente associada ao desmame. Desta forma, como diz Winnicott; “o palco está pronto para as frustrações” e para a aceitação da realidade.[67]

Novidade da teoria de Winnicott

A teoria do desenvolvimento de Winnicott introduz um elemento novo em relação aos desenvolvimentos anteriores da teoria psicanalítica, inclusive da própria teoria kleiniana, da qual ele depende. Para Klein, os objetos internos vão se constituindo gradativamente através dos movimentos pulsionais do bebê, que começa a interagir com a realidade externa, num processo de projeção e introjeção (pulsão oral e anal). Para Klein, contudo, o acento cai sobre o mundo interno do bebê, restando ao mundo externo apenas confirmar ou contradizer suas fantasias internas que se originam a partir dos instintos (pulsão de morte e de vida). Para ela, o equilíbrio depende muito mais de uma capacidade inata do bebê de integrar os dois movimentos pulsionais, levando-o a se equilibrar gradativamente entre posição esquizo-paranóide e posição depressiva, num movimento que envolve, inicialmente, agressão ao objeto percebido como cindido, e, num estágio de desenvolvimento sucessivo, quando o objeto pode ser percebido em sua totalidade, culpa e reparação.Winnicott, embora assuma vários elementos da teoria kleiniana, discorda abertamente da tese do inatismo e não aceita o conceito de pulsão de morte.
“Segundo meu ponto de vista, tanto Freud como Klein desviaram-se (…) e refugiaram-se na hereditariedade. O conceito de instinto de morte poderia ser descrito como uma reafirmação do princípio do pecado original. Já tentei desenvolver o tema de que tanto Freud quanto Klein evitaram, assim procedendo, a implicação plena da dependência e, portanto, do fator ambiental. Se a dependência realmente significa dependência, então a história de um bebê individualmente não pode ser escrita apenas [o grifo é meu] em termos do bebê. Tem de ser escrita também [o grifo é meu] em termos da provisão ambiental.”[68]
Portanto, mesmo mantendo o conceito de fantasia e de objeto interno, Winnicott introduz a idéia de que há um enriquecimento do mundo interno a partir do mundo externo e isto permite ao indivíduo enfrentar o imenso choque da perda da onipotência. A respeito da fantasia, ele observa que não é algo que o indivíduo cria para lidar com as frustrações da realidade externa, a fantasia é “mais primária que a realidade e o enriquecimento da fantasia com as experiências do mundo depende da experiência da ilusão”.[69] No entanto, para que a ilusão se produza “é necessário que um ser humano se dê ao trabalho de trazer o tempo todo o mundo até o bebê, de forma compreensiva e de maneira limitada”.[70] Desta forma, o objeto subjetivo, criado pela atividade alucinatória do bebê, passa a se relacionar gradativamente a objetos objetivamente percebidos, mas sempre a partir de uma provisão ambiental suficientemente boa. “Não há possibilidade alguma de um bebê progredir do princípio de prazer para o princípio de realidade ou no sentido, e para além dela, da identificação primária [e aqui Winnicott se refere explicitamente à teoria freudiana da obra Ego e id] a menos que exista uma mãe suficientemente boa”.[71] Uma mãe é boa na medida em que é capaz de se adaptar ativamente ás necessidades do bebê, reduzindo gradativamente esta capacidade à medida que o bebê se torna capaz de tolerar a frustração.

Conclusão

A partir das considerações feitas até aqui, podemos agora abordar as questões apresentadas no início do nosso estudo. Em primeiro lugar, nos perguntávamos se o self é construído de fora para dentro, ou se é construído de dentro para fora. Jung chama a atenção para o valor individualizador, por assim dizer, do self, pois é a partir do self que o processo de individuação acontece, mas, ao mesmo tempo, ele estabelece uma ponte entre o si-mesmo e o universal, o coletivo. Seu conceito de universal, contudo, não está relacionado ao mundo externo e aos seus padrões morais, ideais e leis gerais, rejeitados pelo homem contemporâneo como cálices amargos, fonte de exclusão e de discriminação, como faz notar Taylor. Por estar ligado à concepção de inconsciente coletivo, o self junguiano nada tem a ver com esses referenciais que apontam para um ser humano ideal, ora a partir de uma pretensa possibilidade de perscrutar a essência do ser e as leis universais de origem divina; ora duvidando dessa possibilidade, mas acreditando numa idéia de homem que vai se formando ao longo dos séculos, e que, por sua vez, é construtora da consciência humana; ou, de um homem que se faz a partir da história; ou ainda de um homem que se faz a partir das próprias estruturas da linguagem. O conceito de inconsciente coletivo traz uma instância nova, que supera a consciência limitada do eu. O self seria, neste sentido, um portal que abre a consciência sobre um universo Inconsciente inexplorado, no qual os opostos se unem e o indivíduo se percebe como único e, ao mesmo tempo, como parte de uma energia vital poderosa.
A visão junguiana nos permite postular a existência de uma instância psíquica que faz a ponte entre o interno e o externo, entre o mundo da consciência e o inconsciente, tendendo à integração de elementos inicialmente dissociados no âmbito psíquico individual. Neste sentido, ele recupera o sentido dialógico do self analisado por James e Wiley, que por sua vez retoma Pierce e Mead. Este núcleo psíquico, contudo, não condena o homem ao individualismo, pois ele está estritamente relacionado com uma dimensão mais ampla, coletiva e, de certa forma universal. Trata-se de uma identidade que nada tem a ver com padrões morais, mas relacionada a algo mais profundo, mais essencial, ao qual os padrões morais também estão submetidos. Poderíamos chamar isso de natureza humana? O termo está sem dúvida desgastado por séculos de contendas filosóficas. Talvez possamos falar num núcleo vital primário, inconsciente, que de vez em quando atinge a consciência e se expressa em formas culturais definidas, na linguagem, na história e em sistemas éticos determinados.
O self seria portanto o elo que introduz o indivíduo nessa experiência vital, fazendo com que ele se perceba como existente e não apenas existido, vivo e não apenas vivido, por alguém ou por algo externo a ele. Nesse sentido, a contribuição de Winnicott é fundamental para perceber a maneira como o self se constitui. O ser humano só pode chegar a ser ele mesmo, a partir de um olhar, de um outro, que possa espelhar sua criatividade primária, num outro que o ajude a perceber que ele existe, no sentido literal da palavra (emergir do ser). Sem fazer a experiência de poder criar o ser, o homem não passa a existir como indivíduo. Ele poderá ser existido, desenvolvendo aquilo que Winnicott e outros definem como falso self, sendo um espectral, como diria Safra. Podemos nos arriscar a dizer que uma verdadeira moral deve aproximar o ser humano dessa experiência primária e não apenas se tornar um código (no sentido usado hoje pela informática), uma programação para executar uma tarefa no mundo. Uma moral verdadeira deve pôr o ser em contato com a possibilidade de criar a partir do que já foi criado pela história humana, no decorrer dos séculos. Esta primeira abordagem permite a sucessiva, que supõe a frustração e a adaptação. Neste caso, porem, a adaptação não é uma experiência de self alienado, mas pode se tornar uma experiência de realização do self, que, como Jung dizia, uma vez que se reconhece, pode até renunciar a si mesmo.
Como parece insinuar Freud, podemos ainda conceber o self como uma parte específica da mente, caracterizada por atributos e funções especiais. Além de permitir uma ponte entre consciente e inconsciente, uma função importante do self é estabelecer a continuidade temporal, que garante ao indivíduo a unidade para além da fragmentação do espaço e do tempo. Como esclareceu Wiley, esta função se estende à possibilidade do ser humano se relacionar com a atividade simbólica, integrando em si o objeto, o significado e o próprio intérprete.
Nos perguntávamos no início deste trabalho se o self tem algo a ver com o caráter, com a personalidade moral de um indivíduo. De certa forma diria que sim, pois o self é a maneira única de uma pessoa existir no mundo. Inclusive uma maneira criativa de abordar as instâncias morais, no emergir da estrutura superegóica. Isto evidentemente supõe uma capacidade por parte do self de fazer a ponte entre consciente e inconsciente, de entrar em contato com os conteúdos internos e de elaborá-los, numa compreensão sempre nova, numa capacidade paradoxal de integrar elementos opostos: instintos de vida e de morte, desejos inconscientes e instâncias da realidade, objetos internos e objetos externos, as fantasias internas e a ambígua opacidade da realidade externa. Este, diga-se de passagem, é, a meu ver, o papel da análise hoje. Contudo, não quero dizer simplesmente que a pessoa se constitui a partir de normas e leis morais externas. A identidade pessoal é muito mais do que isso. Uma relação sélfica com o meio-ambiente é muito mais complexa. Como frisa Winnicott, ela surge de uma criação original, inicialmente a partir da alucinação e, depois, de um brincar com a matéria amorfa, num emergir criativo de objetos internos, subjetivamente criados e, aos poucos, descobertos, na relação com o meio-ambiente, em sua consistência objetiva de objetos não-eu. E aqui entra um elemento importante. A identidade pessoal do self se constrói na relação. Não numa relação abstrata com o meio-ambiente, mas numa relação pessoal, marcada pelo amor, pela capacidade do meio-ambiente conter o sujeito e interagir com ele de forma adequada, no respeito de sua criatividade originária e única. Um meio-ambiente que não seja invasivo, que saiba respeitar o devaneio e o brincar. Podemos vislumbrar nisso não apenas uma indicação pediátrica para as futuras mães, mas também um padrão educativo que deve continuar na escola, chegando a informar as relações de trabalho e as relações entre os vários grupos sociais, étnicos e religiosos. Utopia? Poderia tratar-se de uma utopia se estivéssemos falando de algo abstrato, no entanto, estamos falando do ser humano em sua concretude, estamos falando da possibilidade do homem se tornar humano.
Winnicott postula um ambiente suficientemente bom, para que o self possa se constituir. Percebemos pelas análises de Harvey e Rosen que o nosso ambiente está longe de ser suficientemente bom. Ele é invasivo, ameaçador, priva o homem do seu desejo e o joga numa situação de no sense, de esvaziamento de sentido, de não realidade, situações que Gilberto Safra descreve com pertinência a partir de sua experiência clínica. Cabe a pergunta se, para uma mãe que vive neste contexto, permanentemente invadida pelo mundo externo, ainda é possível efetuar a mediação, ser continente, controlando o estresse e a ansiedade. Dito de outra forma, num mundo onde tendem a se impor padrões de comportamento cada vez mais psicóticos (uso este termo levando em conta a perda da dimensão de realidade que está envolvida nos fenômenos acima analisados), o ambiente, e em particular quem exerce a função materna, risca de não poder proporcionar ao self em construção um habitat adequado e “suficientemente” bom. O resultado é a construção do falso self, que, ao multiplicar-se, cria um inferno dantesco, onde a humanidade está em busca de algo que parece estar irremediavelmente perdido no faiscar dos anúncios publicitários, nos estereótipos de comportamento, no ir e voltar caótico e sem sentido do trânsito, no pulsar dos bits e na perda de sentido dos bytes. Parafraseando Dante Alighieri, o nosso destino parece ser caminhar nessa imensa selva obscura, dominada pelo fantasma da violência, onde o caminho (do self) foi perdido.
Notas
[1] C. TAYLOR, As fontes do self, Loyola, S. Paulo, 1997.
  [4] Citado no verbete “Self” de J. MIELDS in Dicionário de Psicologia, Vol. 3, Loyola, São Paulo, 1982, p. 290.

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[6] Id., Ibid., pp. 223-224.
 [7] Ao fazer um breve apanhado sobre o conceito de self em Jung, Winnicott indica, como uma das melhores contribuições sobre o tema, o artigo de M. FORDHAM, “The empirical foundation and theories of the self in Jung´s work” in Journal of Analytic Psychology (1963), 8 (cf. Explorações psicanalítica, Artes Médicas, Porto Alegre, 1994, p.370).
[8] Para este conceito nos referimos ao verbete “Se” [si-mesmo] in P. F. PIERI, Dizionario junghiano, Bollati Boringhieri, Torino, 1998, pp. 6511-657 (obra traduzida pela editora Paulus). Na exposição do conceito junguiano de self, uso o termo si-mesmo que é usado na tradução das obras de Jung em português para indicar o self.
[9] O conceito de superego como lei geral pode parecer um tanto estranho para um psicanalista, pois para Freud o superego não se identifica pura e simplesmente com a lei e com as normas culturais, mas é uma instância psíquica, derivada de uma interiorização das figuras paternas e, portanto, carregada de elementos inconscientes. Um texto de Jung citado no verbete mostra, a meu ver, uma compreensão do superego que não era exatamente aquela freudiana. Referindo–se ao fato do ego estar subordinado a instâncias superiores ele observa: “Tais instâncias não são eo ipso equiparáveis a uma consciência moral coletiva como Freud queria com o seu superego, e sim condições psíquicas a priori do homem, não empiricamente adquiridas” (p. 653). A tradução dos textos citados é minha.
[10] Cf. “Introdução do editor inglês” (S. FREUD, “Ego e Id” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XIX, Imago, Rio de Janeiro, 1996, pp. 19-20).
[11] As considerações a seguir foram extraídas do verbete “Se” in Dizionario di psichiatria, Astrolabio, Roma, 1979, p.686.
[12] H. KOHUT, Análise do self, Imago, Rio de Janeiro, 1988, p. 14.
[13] Id. Ibid., p. 14.
[14] Id. Ibid., p. 14.
[15] Id. Ibid., p. 14.
[16] Id. Ibid., p. 14.
[17] Cf. Id. Ibid., p. 108. Na realidade este é um conceito que Kohut pega emprestado de Hartmann (Ego, Psychology and the problem of adaptation, International University Press, Nova Iorque, 1958 e “On rational and irrational action” in Essays on Ego Psychology, International University Press, Nova Iorque, 1964, pp. 37-68).
[18] O texto citado em Dizionario di psichiatria foi extraído da obra de J. A. GEDO & A. GOLDBERG, Modelli della m ente, Astrolabio, Roma, 1975.
[19] Cf. o verbete “Se” in Dizionario di psichiatria, Astrolabio, Roma, 1979, p. 687.
[20] Esta é também a opinião de Winnicott (cf. Explorações psicanalítica, Artes Médicas, Porto Alegre, 1994, p.371).
[21] D. HARVEY, Condição pós-moderna, Loyola, São Paulo, 1992, p. 293. Apesar de ter sido publicada em 1989, esta obra tornou-se um ponto de referência que me parece ainda válido para a compreensão da situação psíquica do homem contemporâneo.
[22] Harvey cita, a título de exemplo, os sistemas de entrega just-in-time, voltados para a redução de estoques, uma tendência que as novas tecnologias de informação e o comércio eletrônico equacionam com a personalização do atendimento, centrada nas práticas do Customer Relationship Management (CRM), associada à Total Quality Management.
[23] Id., Ibid., p. 257.
[24] Cf., por exemplo, o capítulo “A indústria cultural: o esclarecimento como mistifiação das massas ” in T. ADORNO & M. HORKHEIMER, Dialética do esclarecimento, Zahar, Rio de Janeiro, 1985, pp. 112-156.
[25] Sobre este tema cf. o meu ensaio “O esvaziamento dos símbolos” (publicado no meu site: http://sites.uol.com.br/rgirola).
[26] A este respeito harvey remete aos trabalhos de Toffler e Simmel, sobre os impactos psicológicos da sobrecarga sensorial.
[27] Citado em D. HARVEY, Op. Cit., p. 56. A análise à qual Harvey remete é extraída do artigo de F. JAMESON, “Postmodernism, or the cultural logic of late capitalism” in New Left Revue (146), pp. 53-92.
[28] Citado em Id., Ibid., p. 56.
[29] Citado em Id., Ibid., p. 57.
[30] Citado em Id., Ibid., p. 57 e extraído da obra The Anti-Oedipus, p. 245.
[31] Cf. “Tecnologia cansa” in Veja (03/11/00, no 45), pp. 11-15.
[32] G. SAFRA, A face estética do self, Unimarcos Editora, São Paulo, 1999.
[33] Id., Ibid., p. 13.
[34] Id., Ibid., p. 14.
[35] Id., Ibid., p. 14.
[36] Id., Ibid., p. 20 (nota 3).
[37] “Percebemos a importância vital da provisão ambiental, especialmente no início mesmo da vida infantil do indivíduo” (Cf. D. W. WINNICOTT, “A criatividade e suas origens” in O brincar & a realidade, Imago, Rio de janeiro, 1975, p. 97).
[38] D. W. WINNICOTT, “Desenvolvimento emocional primitivo” in Textos selecionados: da Pediatria à Psicanálise, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1982, p. 273.
[39] Id., Ibid., p.274.
[40] “Postulamos uma não-integração primária” (cf. Id., Ibid., p.275). Esta tese é retomada mais tarde (1952), em “Psicose e cuidados maternos”, com outras palavras: “Inicialmente, o indivíduo não é a unidade” (cf. D. W. WINNICOTT, “Psicose e cuidados maternos” in Textos selecionados: da Pediatria à Psicanálise, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1982, p. 378).
[41] Id., Ibid., p.276.
[42] “Não importa para ele [o bebê] ser muitos pedaços ou um ser inteiro, viver no rosto da mãe [espelhado portanto] ou em seu próprio corpo, desde que, de tempos em tempos, ele se torne uno e sinta algo” (cf. Id., Ibid., p.276).
[43] Id., Ibid., p.277.
[44] Id., Ibid., p.276.
[45] Cf. D. W. WINNICOTT, “Psicose e cuidados maternos” in Textos selecionados: da Pediatria à Psicanálise, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1982, p. 379.
[46] Cf. Id., Ibid., p. 380.
[47] Neste sentido, parece-me que uma certa organização na determinação dos horários do bebê, por parte de quem exerce o cuidado materno, pode ser significativa, ajudando a tornar menos invasiva a apresentação do meio externo.
[48] Cf. Id., Ibid., p. 376.
[49] D. W. WINNICOTT, “Desenvolvimento emocional primitivo” in Textos selecionados: da Pediatria à Psicanálise, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1982, p. 280.
[50] D. W. WINNICOTT, “Observação de bebês em situação estabelecida” in Textos selecionados: da Pediatria à Psicanálise, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1982, p. 279.
[51]D. W. WINNICOTT, “Objetos transicionais e fenômenos transicionais” in Textos selecionados: da Pediatria à Psicanálise, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1982, p. 402.
[52] D. W. Winnicott, em O brincar & a realidade, Imago, Rio de Janeiro, 1975, pp. 98-99.
[53] Id., Ibid., p. 113.
[54] Id., Ibid., p. 114.
[55] Id., Ibid., p. 114.
[56] Id., Ibid., p. 115.
[57] D. W. Winnicott, em O brincar & a realidade, Imago, Rio de Janeiro, 1975, p. 80.
[58] Id., Ibid., p. 81.
[59] Id., Ibid., p. 63.
[60] Id., Ibid., p. 63.
[61] Cf. Id., Ibid., p. 54 e 81.
[62] Sobre o uso do brincar na clínica cf. Id., Ibid., pp. 83-93.
[63] As considerações a seguir foram extraídas do texto de 1951 “Objetos transicionais e fenômenos transicionais” in Textos selecionados: da Pediatria à Psicanálise, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1982, pp. 389-408.
[64] Cf. Id., Ibid., p. 394.
[65] Cf. Id., Ibid., p. 402.
[66] Cf. Id., Ibid., p. 402.
[67] Cf. Id., Ibid., p. 404.
[68] D. W. Winnicott, em O brincar & a realidade, Imago, Rio de Janeiro, 1975, p. 102.
[69] Cf. D. W. WINNICOTT, “Desenvolvimento emocional primitivo” in Textos selecionados: da Pediatria à Psicanálise, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1982, p. 280.
[70] Id, Ibid., p. 280.
[71] D. W. WINNICOTT, “Observação de bebês em situação estabelecida” in Textos selecionados: da Pediatria à Psicanálise, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1982, p. 151.
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