Quando a vida diz não : Por que às vezes me sinto tão importante e em outros momentos tão insignificante? Anônimo (São Paulo)
Ferida narcísica: brecha sobre a harmonia do Ser?
A primeira ferida que a nossa estrutura narcísica sofreu foi quando a nossa mãe resolveu nos negar o peito. O desmame é a experiência que nos inicia à frustração do nosso desejo, mostrando-nos um mundo que nem sempre está disposto a nos dar atenção.
A nossa vida é um alternar-se de estados de ânimo que oscilam entre a euforia narcísica e a melancolia depressiva. Há momentos em que nos sentimos o centro do universo, predominando a sensação de sermos amados, bem-sucedidos, vitoriosos e “poderosos”.
A sensação infelizmente não costuma ser duradora. Precisamos constantemente realimentá-la chamando a atenção sobre a nossa pessoa para “confirmar” que realmente temos valor. Esta confirmação é esperada por parte dos outros, quando cobramos atenção, consideração, reconhecimento, valorização e afeto.
Há contudo momentos na vida em que percebemos claramente o quanto tudo isso é ilusório. A perda do emprego, um fracasso escolar ou profissional, o fim de uma relação, uma dificuldade financeira, ou até uma simples mudança de endereço nos fazem perceber o quanto a nossa presença é “dispensável”. O nosso lugar é tomado por outro profissional, outro vizinho, outro aluno; colegas e amigos se afastam; o nosso antigo parceiro encontra outra pessoa e até os filhos parecem estar muito bem com o pai ou a mãe substitutos. A vida se reorganiza ao nosso redor e tudo continua sem a nossa presença.
A morte é a experiência mais radical de quanto somos dispensáveis. Quando alguém nos deixa, em pouco tempo, a vida se reorganiza sem a sua presença e dele sobra uma lembrança mais ou menos intensa, destinada a se diluir com o tempo.
Se é verdade que os momentos de crise apontam para a crua “realidade” de que somos limitados, os momentos de euforia narcísica também parecem apontar para alguma “realidade”, talvez menos palpável.
Embora a palavra “narcísico” frequentemente remeta a algo menor e até desprezível, caso se torne sinônimo de egoísmo e arrogância, a estrutura narcísica é parte essencial do humano e tem uma função psíquica importante, pois é um núcleo em torno do qual se organiza a nossa personalidade e do qual e para o qual flui a nossa libido.
Surge aqui a pergunta: a importância desse núcleo é apenas psicológica, da ordem do sujeito, ou remete ao fato do sujeito ter uma importância real na ordem do Ser? A pergunta extrapola a análise psicológica e nos desloca para o campo da filosofia e da religião, por ser uma questão que diz respeito à busca do sentido da existência humana.
Talvez alguns psicanalistas mais ortodoxos vejam nisso apenas uma tentativa de fugir da ineludível realidade da castração, mas para a Psicanálise contemporânea, que se foca nas questões do Self, entendido como uma expressão do Eu profundo e um constitutivo essencial da subjetividade, essa pergunta talvez não seja tão dispensável.
Enfim, a realidade do sujeito vive se equilibrando em uma gangorra: “Eu sou absolutamente central para mim mesmo e Eu sou “substituível” na ordem da realidade externa”. A pergunta é: podemos falar da importância real do “si mesmo” (Self) na ordem do Ser? Ou seja, dito de forma mais simples, existe uma realidade maior onde meus apelos narcísicos encontram algum sentido? Na ordem do ser o meu Eu, embora seja apenas uma fagulha do Todo, tem algum sentido especial?
Talvez a resposta só possa ser dada indo para o território da fé. Na sua versão judaico-cristã a expressão mais radical disso é a crença de que cada ser humano é criado “à imagem e semelhança” do Ser Supremo. O desafio é poder reconhecer isso “quando a vida diz não”.