Verdade: que verdade?

A verdade: que verdade?

No mês de dezembro de 2010, Jonah Lehrer publicou na conceituada revista semanal americana The New Yorker, sob a resenha Anais de Ciência, um intrigante artigo com o título The truth wears off que poderia ser traduzido como A verdade ficou mais fraca. O subtítulo “Há algo errado com o método científico?” esclarece qual é o foco do artigo.

Partindo de dados recentes apresentados no Congresso de Bruxelas na área de neurociência e de neurofarmacologia, o autor relata que novos testes científicos sobre a segunda geração de remédios antipsicóticos (Ability, Zyprexa, Seroquel) — considerados a partir da pesquisa científica inicial como um avanço substancial no controle da psicose – demonstraram, em um segundo momento, uma substancial perda do poder terapêutico desses remédios.

O artigo mostra que esta não é a única área em que resultados científicos tidos como seguros em um primeiro momento se revelaram fracos ou inconsistentes diante daquilo que os cientistas chamam de teste da repetição. O teste consiste em reproduzir as mesmas condições de uma pesquisa científica inicial para ver, se decorrido certo período de tempo, os dados continuam valendo.

Em todos os exemplos apresentados no artigo os cientistas tiveram que se deparar com um fenômeno chamado efeito de declínio, ou seja, uma constante e inexplicável variação nos dados obtidos pela mesma pesquisa científica, não importa em que área ela se aplique (os exemplos abrangem áreas bem diferentes), desde as neurociências até a lei de gravidade.

Apesar disso, existe uma forte resistência dos próprios cientistas e das publicações científicas em lidar com esse fenômeno. Da mesma forma ele é desconsiderado pela maioria dos que se baseiam nos dados científicos questionados para tomar suas decisões. Tudo isso parece afetar o encantamento com a ciência, que também passa a viver sob o domínio da humana falibilidade. Embora gostemos de acreditar que possamos definir cientificamente o que é certo e o que é errado, devemos concluir com o autor do artigo que “O fato de uma ideia ser verdadeira não quer dizer que ela possa ser provada”. Da mesma forma: “O fato de uma ideia poder ser provada não quer dizer que seja verdadeira”.

Se isso vale para a ciência, diante da qual costumamos nos inclinar em reverente obséquio, imaginemos o quanto faz sentido no nosso dia-a-dia, dominado por intermináveis discussões sobre quem está certo e quem está errado. Aliás, a “verdade” sempre anda em um dos nossos bolsos, pronta para ser exibida para quem for, toda vez que nos sentimos ameaçados pela “verdade” do outro. Frequentemente deixamos de ser felizes porque prevalece o desejo de estarmos “certos”. Defender a nossa verdade se torna uma prioridade absoluta, que nos impede escutar e dialogar com a “verdade” do outro. Quem sabe nossos horizontes poderiam se ampliar se pudéssemos ouvir a verdade do outro e perceber o quanto a nossa pode ser falível.

Já imagino que alguém comece a se perguntar: “Mas afin  al existe a verdade?”. Tudo nos leva a pensar que a “verdade” existe, mas que talvez ela não seja exatamente como a imaginamos. Talvez esse comportamento bizarro das pesquisas científicas possa nos dar umas dicas quanto á maneira como o nosso desejo interfere com a verdade. De fato, do ponto de vista emocional, em um primeiro momento, o pesquisador está sob o foco do seu desejo, que é descobrir algo novo, útil e inusitado. No segundo momento, no teste da repetição, o que prevalece é o medo dele ter errado na primeira pesquisa, ou o desejo de achar o erro do colega, caso não seja a mesma pessoa que aplica o teste da repetição.

Será que o desejo do observador interfere com a forma como a realidade se mostra e portanto sobre a forma como o mesmo chega a conceber a verdade? Provavelmente sim. Ampliando o leque de sentimentos que podem interferir no nosso modo de ter acesso à realidade, podemos supor que qualquer sentimento pode interferir na percepção da realidade e mediar a nossa concepção da verdade.

Tudo isso é negativo? Absolutamente não, muito pelo contrário. Cada um de nós, a partir do seu mundo interno, “revela” um aspecto da verdade, seja ele norteado pelo medo, pelo desejo, pela ansiedade ou por qualquer outro sentimento. O único inimigo absoluto da verdade é a impossibilidade de pensar, pois ela nos remete aos objetos bizarros e opacos que abitam a nossa mente e fragmentam inexoravelmente a realidade e a nossa concepção da mesma.{jcomments on}

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