Desejo (Freud, Platão e cristianismo)

Desejo (Freud, Platão e cristianismo)
© Roberto Girola – Novembro 1999

Índice

Introdução

Considerações sobre a antropologia bíblica

Uma aproximação da concepção pulsional freudiana.

Platão: O nascimento de Eros

A sensualidade em Tomás de Aquino

Conclusão

Introdução

Comentando um dos últimos documentos da Igreja Católica sobre o exorcismo a Revista Veja escreve: “Em casos de dúvida, recomenda o Vaticano, a atitude correta do exorcista deve ser consultar médicos e psicólogos. Uma tal cautela refletiria um reconhecimento tardio da Igreja Católica de que a psicologia e a psiquiatria servem para alguma coisa? Equivaleria a uma reabilitação do fundador da psicanálise, Sigmund Freud, um dos maiores antagonistas da fé católica nos tempos modernos? ”.[1] Concordo com o autor do artigo quando diz que talvez seja cedo para comemorar um tal armistício. De qualquer forma, após cem anos de mútuas acusações e incompreensões, trata-se de uma virada, no âmbito de um diálogo mais amplo que a Igreja Católica parece disposta a empreender com as diferentes expressões culturais que marcam a vida do homem contemporâneo.

Sabemos contudo que não são suficientes declarações desse tipo para pôr fim às dificuldades que pontuam um diálogo difícil, tanto de um lado como do outro. De fato, parecem existir, por trás da visão freudiana do homem, conceitos filosóficos que dificilmente se enquadram na visão antropológica judaico-cristã. Ao mesmo tempo, é inegável que a cultura cristã se confunde em muitos aspectos com a cultura ocidental, que foi se formando em diálogo e em conflito com ela. Na prática clínica, esta situação não deixa de ter sua importância. O analista se depara diariamente com pacientes que, conscientemente ou inconscientemente, foram marcados pela cultura cristã, tanto em seus aspectos positivos como negativos. Por sua vez, ele mesmo está envolvido nesta forma mentis pelo fato de ser parte desse contexto cultural, que permeia também sua maneira de pensar consciente e seu universo inconsciente. Parece-me portanto significativo para o analista tentar identificar os elementos que influenciam a sua visão de mundo e aquela de seus pacientes, sejam eles crentes assumidos ou não. Pelas características deste trabalho, não será possível aprofundar todos os aspectos ligados a esta temática, que exigiriam uma abordagem ampla e complexa. Pretendemos apenas apontar algumas pistas para a reflexão, sem nenhuma pretensão de esgotar o assunto. Talvez outros se sintam estimulados a faze-lo, com a profundidade que o tema exige.

Uma primeira dificuldade, ao abordar o tema, se encontra na própria ambigüidade da cultura judaico-cristã. Se por um lado, os textos bíblicos que inspiraram o cristianismo nasceram num cenário semita, caracterizado por uma visão antropológica profundamente diferente da nossa, por outro lado, os textos do Novo Testamento já nascem num contexto cultural marcado pela influência do helenismo. O diálogo com o helenismo influenciará de forma significativa os primeiros séculos do Cristianismo, numa controvertida tentativa de inculturação. O horizonte torna-se ainda mais complexo se considerarmos que os primeiros séculos da era cristã são marcados por várias correntes de pensamento, às vezes bastante diferentes entre si. Estoicismo, Ceticismo, Neoplatonismo, Epicurismo, Maniqueísmo são apenas algumas das tendências filosóficas presentes na época, sem contar os inúmeros movimentos ligados às religiões esotéricas de origem oriental, que tornam o cenário dos últimos séculos do Império Romano ainda mais confuso. Analisá-los seria interessante. Vários autores tentaram fazê-lo, sobretudo numa perspectiva filosófico-teológica.[2] No entanto, mais uma vez, trata-se de uma tarefa que excede os limites deste trabalho. Nossa proposta é mais modesta. Gostaríamos apenas de levantar alguns elementos da teoria pulsional freudiana, esboçando aspectos conexos da antropologia bíblica, para depois tentar identificar traços dessa teoria na visão platônica e aristotélica, que representam tendências importantes para a cultura ocidental cristã, na figura de duas personalidades marcantes: Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. No entanto, examinaremos a visão platônica, não inspirados nos textos de Agostinho de Hipona, mas do próprio Platão, com a ajuda dos comentários de Giovanni Reale, um estudioso, que, na esteira da Escola de Tübingen, vem revolucionando, nos últimos anos, a leitura de Platão. Já no caso da teoria aristotélica, recorreremos à interpretação que deu dela Santo Tomás de Aquino, em chave cristã. A razão é simples. Enquanto Platão nunca deixou de ser lido, influenciando sensivelmente o pensamento cristão dos primeiros séculos, não apenas através de Agostinho, mas também de outros pensadores, sobretudo da teologia dos chamados Padres Gregos (Basílio, Gregório, Anastácio, Cirilo de Alexandria, etc.), Aristóteles, foi introduzido no âmbito da cultura cristã e devolvido novamente ao mundo ocidental latino somente no século XIII. Antes disso conheciam-se apenas os textos sobre a Lógica. Foi graças aos filósofos árabes (entre eles destacam-se Avicenna e Averroé) que começaram a circular as traduções dos textos aristotélicos de caráter metafísico. Sucessivamente, por meio de sua monumental produção teológico-filosófica, na qual se destaca a Suma Teológica, uma obra realmente enciclopédica, Tomás de Aquino introduz, não sem criar polêmicas, a visão aristotélica no universo filosófico cristão até então dominado pelo neoplatonismo e pelo estoicismo.

 Considerações sobre a antropologia bíblica

 Alguns pontos distinguem essencialmente o cristianismo do pensamento grego e passam a constituir o âmago das longas polêmicas filosóficas que marcaram o processo de inculturação do cristianismo no mundo helênico e latino, São algumas concepções básicas a respeito de Deus, da origem do mundo e do homem. Podemos resumir grosso modo assim os pontos de conflito, introduzidos pelo cristianismo:

1. Visão pessoal de Deus, como ser trinitário e relacional;

2. Concepção da criação do mundo, como ato de amor divino;

3. Concepção do homem como ser livre (portanto responsável pela presença do mal no mundo), centro da criação e chamado à amizade com Deus;

4. Encarnação de Deus na história.

Quanto à visão do homem, a Bíblia, antes de sofrer a influência helênica que pode ser verificada sobretudo em alguns textos do Novo Testamento e no livro da Sabedoria (que por ter sido escrito em grego foi excluído do cânon hebraico), tem essencialmente uma visão semítica. Nela podemos destacar alguns conceitos essenciais:

– Corpo: o pensamento semita não separa o corpo da alma (identificada com o sangue). Serão os escritos de Paulo e da Sabedoria que passarão a considerar o corpo como a prisão da alma. Nesta concepção tardia, a carne passa a ser considerada escrava das paixões e submetida ao pecado. Contudo, mesmo nesta visão, a carne não é destinada à destruição (morte), mas à ressurreição, recuperando-se assim o destino originário simbolizado no Éden pelo acesso à árvore da Vida (uma temática presente não somente na Bíblia, mas em todo o contexto do Oriente Médio antigo). Supera-se assim o desprezo que a visão estóica tinha do corpo e valoriza-se a vida que, por ter sua origem em Deus, não pode ser destruída.

– Pecado: no Antigo Testamento, o pecado não é uma transgressão de uma lei moral, mas muito mais uma ruptura da relação com Deus. Desde o início, a Bíblia descreve esta relação com Deus como sendo conflituosa. Já no Éden, o homem não resiste à tentação de comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal e acaba, a partir disso, descobrindo sua nudez, ou seja seus limites. É curioso observar que a Tradução Ecumênica da Bíblia, sem dúvida uma das versões mais qualificadas pelo gabarito dos estudiosos de todas as denominações cristãs e do judaísmo que nela contribuíram, na nota onde se comenta a “árvore da vida”, diz que seria mais apropriado traduzir árvore da felicidade e da infelicidade. Uma expressão que se aproxima dos termos usados por Freud para descrever um elemento do dinamismo pulsional: lust e unlust (prazer e desprazer). Com isto relaciona-se esta característica do psiquismo à condição básica do ser humano, a liberdade, que se origina do fato dele ter sido criado à imagem e semelhança de Deus.

– Néfesh: a Bíblia vê o homem como uma unidade orgânica. O termo néfesh, traduzido por alma, não tem o mesmo sentido que essa palavra tem na cultura grega. Ele designa a garganta e portanto o sopro de vida, o ser vivo. É o termo que designa a dimensão pessoal do ser humano (substitui às vezes o pronome pessoal), na sua identidade corporal e espiritual.

– Basar: carne, é o termo usado, quando se quer mencionar o homem na sua fragilidade de ser limitado, na sua dimensão corporal. O corpo recebe de Deus o rúah, o sopro vital. Os ritos de purificação, presentes na Bíblia, não são relacionados a uma visão moral que considera negativamente certas situações (nascimento, ato sexual, doença), mas ao mistério da renovação da vida que deve ser marcado por determinados rituais, através dos quais tais atos são devolvidos a Deus, que é o senhor da vida (sem contar o aspecto higiênico dessas práticas). O conceito de pureza, na Bíblia adquire portanto uma conotação mais ritual do que moral.

– Encarnação: é o conceito central do Cristianismo e constitui talvez o ponto mais alto, mais original e mais polêmico de sua concepção antropológica. Não somente o corpo não é desprezível, mas ele é Templo do Espírito Santo. O infinito torna-se finito e ao finito abrem-se as portas do infinito. Isto configura uma visão do corpo em tensão dialética, entre finito e infinito. Trata-se de uma visão circular, em que o divino desce (o termo grego usado é kénosis, esvaziamento) e ao se humanizar, faz o humano subir ao nível do divino (diis estis, sejam deuses, diz a Bíblia).

 Uma aproximação da concepção pulsional freudiana

É possível estabelecer alguma aproximação entre a teoria pulsional freudiana e o universo da antropologia bíblica acima descrito, que Freud, por ser judeu, sem dúvida conhecia? A teoria pulsional constitui um dos pontos centrais da Teoria Psicanalítica freudiana. É a partir dela que podemos reconstruir a visão antropológica de Freud. Em primeiro lugar, parece-me importante ressaltar algo óbvio, mas que provavelmente nem sempre é levado em conta ao se avaliar a consistência conceitual das teorias freudianas. A preocupação de Freud não era aquela de construir uma teoria antropológica, uma visão religiosa e filosófica do ser humano. Sua preocupação era clínica. Seu objetivo era entender como “funciona” o psiquismo humano, ao qual, como clínico, podia fazer remontar a fonte de tantos sofrimentos. Desta preocupação terapêutica partem suas reflexões. Para confirmar a dramaticidade do dinamismo psíquico, vale a pena citar aqui um texto da Carta aos Romanos, bastante significativo para mostrar a angústia do ser humano diante de forças misteriosas que o dominam e a incapacidade de encontrar uma justificação racional para explicá-las.

Efetivamente, eu não compreendo nada do que faço: o que eu quero, não o faço, mas o que odeio, faço-o. Ora, se faço o que não quero, estou de acordo com a lei e reconheço que ela é boa; não sou eu, pois, quem age assim, mas o pecado que habita em mim . Pois eu sei que em mim — quero dizer em minha carne — o bem não habita: querer o bem está ao meu alcance, não, porém, praticá-lo, visto que não faço o bem, que quero, e faço o mal, que não quero. Ora, se faço o que não quero, não sou eu quem age, mas o pecado que habita em mim. Eu, que quero fazer o bem, constato portanto esta lei: é o mal que está ao meu alcance. Pois eu me comprazo na lei de Deus, enquanto homem interior, mas em meus membros descubro outra lei que combate contra a lei que a minha inteligência ratifica; ela faz de mim o prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros. Infeliz que eu sou! Quem me livrará deste corpo que pertence à morte? (Rm 7, 15-24)

É evidente neste texto paulino, a influência neoplatônica e, ao mesmo tempo, o fracasso dos ideais estóicos de autocontrole. Trata-se de um drama que perpassa a história da humanidade e que, até então, ninguém conseguiu explicar convenientemente. O grande mérito de Freud é justamente tentar uma abordagem do psiquismo que dê conta dessas contradições internas e do fracasso dos processos racionais e volitivos no controle do agir humano. Entre a concepção neoplatônica que contrapunha corpo e alma e a visão bíblica que os relacionava profundamente, Freud parece preferir a segunda, mas introduzindo conceitos fundamentais. Surgem assim as noções de Id, ego e superego, numa visão do psiquismo humano que articula elementos conscientes, pré-conscientes e inconscientes.

No Projeto para uma Psicologia Científica (1895),[3] Freud faz uma primeira tentativa, ainda totalmente vinculada a uma visão neurodinâmica do psiquismo humano (e, neste sentido, ao vincular profundamente a alma ao corpo, ele é profundamente bíblico). A primeira constatação de Freud é a existência, no psiquismo humano, de uma energia pulsional muito forte, que ele define como característica quantitativa Q.[4] No Projeto, Freud tenta descobrir como o organismo lida com esta inflação de estímulos que o agridem, não somente a partir do mundo externo, mas também do mundo interno. A teoria exposta neste texto é bastante complexa e sabemos que o próprio Freud de certa forma a abandonou. Ele associa a energia pulsional a três classes de neurônios (f que não inibe a passagem de energia e permanece inalterado após sua passagem; j que permite uma passagem parcial de energia, ficando modificados após a passagem de energia, sob forma de representação de uma memória; v, que é excitado pela percepção consciente e fornece ao psiquismo a indicação da realidade)[5]. Trata-se de uma antecipação daquilo que mais tarde, ao definir o processo pulsional, definiria como processo primário,[6] processo secundário (vinculado)[7] e princípio da realidade. Entre o mundo externo e o mundo interno inconsciente se situa o ego, que Freud define como “uma organização coerente de processos mentais (…), a instância mental que supervisiona todos os seus próprios processos constituintes”.[8] “A função do ego é unir e reconciliar as reivindicações das três instância a que serve”[9] (Id, mundo externo e superego). Poderíamos dizer que o próprio organismo, para manter o seu equilíbrio diante da pressão pulsional, deve estabelecer barreiras (inibição, recalcamento), guiado pelo princípio de realidade. O ego tem no superego um modelo que se esforça a seguir, um modelo que surge no decorrer de desenvolvimento do psiquismo humano, a partir da dissolução do Complexo de Édipo, através da introjeção das figuras paternas. Estas figuras evocam um poder “por trás do qual jazem escondidas todas as influências do passado e da tradição”.[10] O superego, embora surja de processos inconscientes, torna-se portanto o representante do mundo externo real.

Este mecanismo psíquico é regulado por dois princípios, o princípio de prazer e o princípio de realidade,[11] aos quais, mais tarde, em Mais além do princípio de prazer (1920), Freud acrescenta o princípio de morte. Este princípio acaba adquirindo uma importância cada vez maior na teoria pulsional freudiana. Em certo momento ele parece englobar o próprio princípio de prazer, que nada mais seria que um mecanismo ao seu serviço, com o objetivo de “conduzir a inquietação da vida para a estabilidade do estado inorgânico”,[12] diminuindo a tensão (desprazer) causada pelo desejo, visando sua satisfação (prazer). Freud assume a terminologia de Barbara Low, assimilando esta paz pulsional ao princípio do Nirvana, que estaria a serviço da pulsão de morte. O problema econômico do masoquismo introduz porém uma mudança: “O princípio do Nirvana, pertencendo, como pertence, ao instinto de morte, experimentou nos organismos vivos uma modificação através da qual se tornou o princípio de prazer, e doravante evitaremos encarar os dois princípios como um só. (…) O princípio do Nirvana expressa portanto a tendência do instinto de morte, o princípio de prazer representa as exigências da libido, e a modificação do último princípio, o princípio da realidade , representa a influência do mundo externo”.[13] Na descrição do psiquismo humano aparecem portanto dinamismos que atuam de forma dialética, numa evidente função equilibradora. O desejo impulsiona o ser humano para a ação à procura da satisfação de suas pulsões; o princípio da realidade põe limites a esta busca e o princípio de morte faz com que o ser humano busque uma espécie de paz inorgânica, sendo ao mesmo tempo início (enquanto impulsiona dialeticamente o princípio de prazer) e objetivo do processo pulsional (que busca o retorno a uma situação inicial de inércia).

Estamos evidentemente longe do universo bíblico. Não há dúvidas. Mesmo assim existem pontos de contacto. A árvore da felicidade e da infelicidade indica de fato uma situação original, em que o ser humano, ao assumir sua liberdade, assume o limite, o conflito interior e o eclodir do dinamismo pulsional. Freud evidentemente acrescenta que este dinamismo é somente em pequena parte consciente e portanto dominável pela vontade e pela razão. O conflito está destinado a permanecer, o homem foi irremediavelmente afastado da árvore da vida. No entanto, o processo kenótico divino, que se manifesta na encarnação e que culmina na “morte de Deus” na Cruz, mostra que, no próprio conflito que se instaura, existe a possibilidade da ressurreição, do renascimento. Em termos psicanalíticos, assumir o limite, corresponde à introjeção das figuras paternas, e na conseqüente constituição do superego que segue à dissolução do complexo de Édipo. O ego passa a ter como ideal o superego e põe um limite à fantasia egocêntrica infantil. Trata-se de um momento importante no desenvolvimento humano. Um processo psíquico inconsciente que encontra um eco na exigência posta pela antropologia bíblica, para a qual o homem é chamado à relação com Deus, numa atitude de abandono que supõe a aceitação do seu limite e de abertura à ação do amor divino que pode transformar a morte em vida.

 Platão: o nascimento de Eros [14]

Mas vamos agora deixar o imaginário cristão e vamos mergulhar em Platão, tido por muitos como a causa do excessivo espiritualismo da visão cristã, que parece muitas vezes esquecer da dimensão corpórea e instintual e de suas exigências pulsionais. Evidentemente seria interessante esboçar os conceitos da antropologia platônica e em particular sua visão da alma racional, irascível e concupiscível, mas nossa tarefa aqui vai se reduzir ao exame de alguns textos, que, a meu ver, permitem estabelecer algum paralelo com a teoria pulsional freudiana.

Para Platão o desejo está à origem da amizade e do amor (Eros) e é sempre expressão de uma carência. “O que é carente se mostra amigo daquilo de que é carente”.[15] Esta é uma tendência em direção a algum bem que quem é carente não possui em si. No entanto, para Platão, esta busca do bem é apenas um primeiro passo rumo à descoberta do Bem verdadeiro e supremo ao qual aspiramos (em Platão, e em geral na cultura grega, os conceitos de Bem e Belo praticamente se identificam). “Todas as outras coisas que chamamos amigas (…) como imagens dele (do supremo Bem, n. d. a.) nos atraem enganosamente. Mas aquele princípio é que é verdadeiramente o amigo”.[16] De que princípio Platão estaria falando? O famoso estudioso de Platão, Jaeger, sustenta que o “primeiro amigo” de quem fala o Lisis tem um alcance cósmico, seria uma lei que mantém unidas todas as coisas, seria o Uno, que “ligando à realidade e desdobrando-se nela, funda a simetria cósmica”.[17] Para ser feliz o homem deve fugir da dissolução (pleonexía) e exercitar a temperança (sofrosúne). Neste sentido “não deve permitir que os seus apetites se descontrolem para depois tentar satisfazê-los (…). De fato, esse homem não poderia ser amigo nem de outro homem nem de deus, porque não é capaz de comungar, e onde não há comunhão não pode haver amizade. (…) Terra, deuses e homens são mantidos juntos pela comunhão, pela amizade e pela ordem, pela temperança e pela retidão. (…) E é justamente por essa razão (…) que eles chamam esse todo ‘cosmo’, e não, ao contrário, desordem e falta de regras”.[18] O conceito ao qual Platão se refere aqui porém não é moral e sim cósmico, tanto é que ele chega a falar em igualdade geométrica, uma referência à dimensão matemática que constitui a via de acesso às “Doutrinas não escritas”. De acordo com as últimas pesquisas, magistralmente delineadas por Giovanni Reale no livro citado, a metafísica de Platão não se esgota na exemplaridade do mundo das idéias, mas tem por trás um universo mais amplo, que só seria delineado nas “Doutrinas não escritas” nas quais estariam os verdadeiros fundamentos metafísicos da filosofia platônica, nos chamados Princípios Protológicos. Nesta perspectiva, o domínio das pulsões adquire seu sentido, não no âmbito de uma estéril adequação a normas e leis externas, mas na comunhão com o princípio supremo, na harmonia do Uno. O desejo não é negado, mas desviado para seu verdadeiro objetivo. Podemos observar, contudo, que não é esta a maneira como a “norma moral“ na maioria das vezes é vivida. Ocorre de fato uma redução moralista, um deslocamento que leva a uma visão negativa, legalista e castradora da norma moral. Reduziu-se a comunhão com o Princípio Supremo à observância de normas… Estamos longe da sabedoria à qual os escritos de Platão se referem. Talvez a Psicanálise possa ajudar a entender por que o ser humano tende a fazer esta substituição.

Para Platão é o Uno o fundamento último do Eros que produz a harmonia, permitindo o acordo dos contrários. Portanto, Eros é essencialmente um mediador tanto em sentido vertical, entre o mundo sensível e o puro inteligível, como em sentido horizontal, pois une em si características contrárias: privação e aquisição, pobreza e riqueza, ignorância e sapiência. O conceito de Eros como mediação e síntese de forças opostas é claramente expresso num dos discursos de Sócrates. Trata-se do mito do nascimento de Eros, extraído do Banquete.

Quando nasceu Afrodite, os deuses banquetearam, e entre eles estava Poros, filho de Métis. Depois de terem comido, chegou Pênia para mendigar, porque tinha sido um grande banquete, e ela estava perto da porta. Aconteceu que Poros, embriagado de néctar, dado que ainda não havia vinho, entrou nos jardins de Zeus e, pesado como estava, adormeceu. Pênia, então. pela carência em que se encontrava de tudo o que tem Póros, e cogitando ter um filho de Poros., dormiu com ele e concebeu Eros.

Por isso, Eros tornou-se seguidor e ministro de Afrodite, porque foi gerado durante as suas festas natalícias; e também é por natureza amante da beleza, porque Afrodite também é bela.

Pois que Eros é filho de Pênia e Poros, eis qual é a sua condição. É sempre pobre não é de maneira alguma delicado e belo como geralmente se crê; mas sim sujo hirsuto, descalço, sem teto. Deita-se sempre por terra e não possui nada para cobrir-se descansa dormindo ao ar livre sob as estrelas, nos caminhos e junto às portas. Enfim mostra claramente a natureza da sua mãe, andando sempre acompanhado da pobreza. Ao invés da parte do pai, Eros está sempre à espreita dos belos de corpo e de alma, com sagazes ardis É corajoso, audaz e constante. Eros é um caçador temível, astucioso, sempre armando intrigas. Gosta de invenções e é cheio de expediente para consegui-Ias. É filósofo o tempo todo, encantador poderoso, fazedor de filtros, sofista.

Sua natureza não é nem mortal nem imortal; no mesmo dia, em um momento, quando tudo lhe sucede bem, floresce bem vivo e, no momento seguinte, morre; mas depois retorna à vida graças à natureza paterna. Mas tudo o que consegue pouco a pouco sempre lhe foge das mãos. Numa palavra, Eros nunca é totalmente pobre nem totalmente rico “[19]

A dupla natureza de Eros fica bem clara a partir das características da mãe e do pai. Indigência e necessidade (desejo) se unem a uma inexorável fonte de energias (pulsão), que o levam a buscar e adquirir (satisfação). O que caracteriza Eros é a dinamicidade, que brota de sua estrutura bipolar. Se em termos metafísicos esta estrutura bipolar manifesta a tendência da matéria em busca do seu princípio formal, em termos psíquicos esta estrutura se aproxima da visão freudiana das pulsões que brotam de dois princípios dialéticos a pulsão de morte (Pênia) e a libido (Poros). A missão de Eros, na visão platônica, é levar o homem ao Belo (e portanto ao Bem supremo), que, como observa Reale, é a visibilidade do Uno, um modo de desdobrar-se do Uno na dimensão do ser.

No entanto, a conclusão de Reale é contundente: “(…) É evidente em que sentido o Eros platônico, que se nutre e se sacia do Belo, esteja bem longe do irracional e do alógico, como alguns parecem crer, e as razões pelas quais uma investigação psicanalítica dessa problemática platônica toque apenas aspectos marginais e permaneça longe dos fundamentos”.[20] É uma pena que uma análise tão lúcida, se encerre com uma afirmação tão surpreendente. A meu ver a teoria freudiana, longe de abordar apenas aspectos marginais, nos ajuda a entender melhor a temática platônica. Mais uma vez devemos afirmar que o objetivo de Freud não é de construir uma metafísica (e portanto buscar os fundamentos), mas apenas descrever o psiquismo humano. Eros, como princípio de prazer, como libido, está a serviço da vida, levando o processo pulsional à busca de um objeto. Onde cada ser humano situa este objeto, dependerá da capacidade e da possibilidade de interpretar o seu desejo.

O grande mérito de Freud e dizer-nos que este processo em busca de um objeto cada vez mais elevado, é muito mais complexo do que aparenta. A bipolaridade de Eros não é algo que o raciocínio e a disciplina intelectual consigam dominar facilmente… Não diria portanto que a Psicanálise se situa no campo do irracional e do alógico, mas sim no campo do pré-racional e do pré-lógico. Parafraseando um poeta italiano, podemos dizer que toda nossa vida é um acompanhar essa muralha com em cima cacos agudos de vidro. Negar este drama, esta muralha que nos separa da visão do Todo é negar a nossa condição de seres limitados. Aliás é exatamente esta a contribuição da Filosofia Moderna que, a partir de Descartes, tenta de dar conta da dificuldade que o ser humano tem em se aproximar da essência do real. Abre-se a partir de Descartes uma ferida metafísica que põe cada vez mais em cheque a capacidade do homem de comungar com o Real. O Real è cada vez mais assimilado aos processos mentais humanos, até chegarmos a Kant e às teorias estruturalistas, para as quais o real não é nada mais do que uma criação do intelecto e da linguagem. Uma muralha que as tendências atuais de resgate da metafísica tentam transpor, reconhecendo porém toda a complexidade dessa assimilação do Real no horizonte psíquico.

A sensualidade em Tomás de Aquino

Como foi dito no início deste trabalho, o resgate de Aristóteles, numa cultura em que os esquemas filosóficos neoplatônicos e agostinianos tinham se assimilado profundamente aos ideais cristãos, a ponto de ser considerados parte integrante da própria fé, não foi sem polêmicas. Numa época dominada pela Inquisição, quem tentava escapar da “harmonia” do Todo, corria sérios perigos. Neste sentido, a obra de Tomás de Aquino foi uma tentativa corajosa e intelectualmente consistente de se resgatar uma visão filosófica que poderia enriquecer a visão cristã com um vasto patrimônio científico. A tentativa foi ainda mais corajosa se considerarmos que a concepção geral do mundo aristotélica contrastava profundamente com aquela cristã, como por exemplo na tese da eternidade do mundo (contrária à tese bíblica da criação do mundo):e na visão determinística da história (contrária à visão cristã da Providência). Mas era sobretudo na visão do homem que a concepção aristotélica, ao considerar a alma como forma do corpo (por isso fala-se em materialismo aristotélico), parecia comprometer as teses da espiritualidade da alma e de sua imortalidade. As reações foram violentas, e Bonaventura é um dos principais expoentes dessa corrente contrária às teorias aristotélicas.

O que interessa aqui é a concepção antropológica. Santo Tomás resgata a teoria aristotélica da alma, afirmando que a alma é a forma[21] do corpo. O homem tem consciência seja de conhecer intelectualmente, seja de sentir e o sentir supõe o corpo. O que funda a tese da alma racional ser a forma do corpo é portanto a consciência que o homem tem de ser o sujeito tanto de ações que abrangem a esfera sensível e corpórea como de ações que abrangem a esfera intelectual e espiritual. A preocupação aristotélica e tomista é neste sentido de preservar a unidade do ser humano. O hiato entre corpo e alma, que caracterizava a visão platônica é assim posto em xeque. Mas como explicar a imortalidade da alma, se ele for tão estritamente unida ao corpo? Para Tomás de Aquino, embora a alma intelectiva esteja por trás das funções da alma vegetativa e sensitiva, que se exercem no e pelo corpo, ela possui também uma função superior, o intelecto, que opera independentemente do corpo. A alma possui uma existência (ser) própria, que comunica ao corpo ao se unir a ele como forma, mas que lhe permite sobreviver independentemente do corpo.

Particularmente interessante é a teoria aristotélico-tomista do conhecimento. O ponto de partida é o conhecimento sensível, cujo objeto é a realidade material. Os sentidos, impressionados pela realidade externa põem em movimento o processo abstrativo. O objeto do conhecimento para Aristóteles não são portanto as realidades espirituais em si, mas as essências (estruturas inteligíveis) da realidade corpórea. O conhecimento das realidades espirituais é mediado pelo conhecimento das realidades materiais e sempre necessita de imagens sensíveis para representá-las. Para operar esta abstração, Aristóteles vê no intelecto uma dupla função: o intelecto ativo, que abstrai o inteligível do sensível formando os conceitos, e o intelecto passivo. Percebe-se aqui uma distinção interessante. Se quiséssemos adotar o esquema aristotélico, deveríamos atribuir ao intelecto passivo os processos pulsionais, porque é nele que reside a atividade pré-racional, onde o real é revestido de imagens inteligíveis que o representam.

Da doutrina do conhecimento, Tomás de Aquino extrai a doutrina da vontade. A moção voluntária segue ao conhecimento do intelecto, ao passo que a moção sensitiva segue unicamente a atração sobre ela exercida por um bem (objeto) presente que a atrai. A vontade seria portanto posta em movimento pela ratio boni (razão do bem) contida naquilo em cuja direção tende. Aqui entra em jogo a liberdade. Pois o homem podendo se abrir não apenas aos bens particulares, mas também ao Bem universal, pode escolher isto ou aquilo, sem se sentir necessariamente obrigado à escolha, pois tais bens não se identificam com o bem universal. É lógico que, na visão harmoniosa e hierárquica do ser, assim como Aristóteles a concebe, a tendência sensível estaria subordinada à vontade. Mas como explicar os movimentos aparentemente irracionais do ser humano. Uma tentativa é feita na Suma Teológica, onde Tomás aborda o tema da sensualidade (De Sensualitate, em latim).[22] A seguir o texto extraído da Suma Teológica, onde questão é estudada em três artigos.

“Artigo l A sensualidade é somente apetitiva?

Objeções. Parece que não.

1. Agostinho diz que “o movimento sensível da alma que se estende aos sentidos do corpo é comum ao homem e aos animais”. Ora, os sentidos do corpo estão sob a compreensão da potência cognoscitiva. Logo, a sensualidade é uma potência cognoscitiva.

2. As realidades compreendidas em uma só e mesma divisão pertencem ao mesmo gênero. Ora, Agostinho opõe sensualidade à razão superior e à razão inferior, que são da ordem do conhecimento. Logo, a sensualidade é também uma potência cognoscitiva.

3. A sensualidade fez o papel de serpente na tentação do primeiro homem. Ora, a serpente revelou e propôs o pecado, o que é próprio da potência cognoscitiva. Logo, a sensualidade é uma potência cognoscitiva.

Em sentido contrário A sensualidade se define como apetite das coisas que pertencem ao corpo.

Solução

O termo “sensualidade” parece vir desse “movimento sensível” de que fala Agostinho, do mesmo modo que o nome de uma potência se toma do ato: por exemplo, a visão, do ato de ver. O movimento sensível é o apetite que segue a um conhecimento sensível. Com efeito, o ato de uma faculdade cognoscitiva não é movimento em sentido tão próprio como é o ato do apetite, pois a perfeição do conhecer consiste na presença do conhecido no sujeito que conhece, enquanto que a do apetite provém da inclinação do ser que deseja para o objeto desejado. Em conseqüência, conhecer se compara ao repouso, mas desejar, se compara antes ao movimento. O movimento sensível é, portanto, o ato da faculdade apetitiva, e a sensualidade será o nome dessa faculdade.

Respostas às objeções

1. Quando Agostinho diz que o movimento sensível da alma se estende aos sentidos corporais, isso não significa que os sentidos corporais estejam sob a compreensão da sensualidade, mas antes que o movimento de sensualidade é uma espécie de inclinação para os sentidos corporais, quando, por exemplo, desejamos aquilo que e conhecido pelos sentidos. E desse modo os sentidos são como que os preâmbulos da sensualidade

2. A sensualidade se opõe à razão superior e à razão inferior, enquanto têm em comum o ato de mover. Com efeito, a potência cognoscitiva à qual pertencem a razão superior e inferior é fonte de movimento, como a faculdade apetitiva de que depende a sensualidade.

3. A serpente não somente revelou e propôs o pecado, mas incitou ainda o homem a cometê-lo. E sob esse aspecto, a serpente representa a sensualidade.” [23]

Nesta questão está em jogo uma distinção fundamental, que não era clara na concepção neoplatônica. A sensualidade não pertence à ordem do conhecimento, mas é uma faculdade apetitiva, uma inclinação em direção ao objeto desejado, que segue a um conhecimento sensível. Estamos bastante próximos do conceito de libido e à sua conotação pulsional, embora a Psicanálise mostre que o movimento pulsional não é despertado por um conhecimento sensível, no sentido que aqui Tomás de Aquino parece dar a essa expressão. As moções da libido são de fato originadas, por um movimento psíquico interno, no inconsciente, pautado pela princípio de prazer, pela pulsão de morte e pelo princípio de realidade; somente indiretamente estão ligadas a conhecimentos sensíveis (a presença do seio materno para o bebê). Mas vamos continuar na análise do texto tomista, que aborda a seguir a questão dos apetites irascível e concupiscível, como aspectos da sensualidade.

“Artigo 2 0 apetite sensitivo se distingue em irascível e concupiscível como sendo potências diversas?

Objeções. Parece que não.

1. Uma mesma potência da alma tem como objeto coisas contrárias, como a vista tem como objeto o branco e o preto, como está dito em De Anima, II. Ora, o conveniente e o prejudicial são contrários. Logo, tendo a potência concupiscível como objeto o conveniente, e a irascível, o nocivo, parece que uma mesma potência da alma é irascível e concupiscível.

2. 0 apetite sensitivo não tem como objeto senão aquilo que convém aos sentidos. Ora é isso o objeto da potência concupiscível. Logo, nenhum apetite sensitivo é diferente da potência concupiscível.

3.0 ódio pertence à potência irascível, com efeito, Jerônimo diz: “Tenhamos nessa potência o ódio dos vícios”. Ora, o ódio, sendo o contrário do amor, se encontra na potência concupiscível. Logo, uma mesma potência é a concupiscível e a irascível.

Em sentido contrário Gregório de Nissa e Damasceno distinguem essas duas potências, como partes do apetite sensitivo.

Solução

O apetite sensitivo é uma potência genérica que se chama sensualidade, mas se divide em duas potências que são suas espécies, a irascível e a concupiscível. Para prová-lo é preciso considerar o seguinte: os seres corruptíveis da natureza devem ter não só uma inclinação para conseguir o que lhes convém e a fugir do que lhes é nocivo, mas ainda uma inclinação para resistir às causas de corrupção e aos agentes contrários que põem obstáculo à aquisição do que convém, e produzem o que é danoso. Assim, o fogo é inclinado naturalmente não só a se afastar de um lugar inferior, que não lhe convém, mas a se elevar para o alto, o que lhe convém, e ainda a se opor ao que pode destruí-lo ou impedir sua ação. Sendo o apetite sensitivo uma inclinação que segue ao conhecimento dos sentidos, como o apetite natural é uma inclinação que segue à forma, deve portanto haver na parte sensitiva duas potências apetitivas: uma, pela qual a alma é simplesmente inclinada a buscar o que lhe convém na ordem dos sentidos, e a fugir do que pode prejudicar, é a concupiscível; a outra, pela qual o animal resiste aos atacantes que combatem o que lhes convém e causam dano, é a irascível. Em conseqüência, se diz que seu objeto é “aquilo que é árduo’, pois sua tendência a leva a superar e a prevalecer sobre as adversidades. Não se pode reduzir essas duas inclinações a um mesmo princípio: porque acontece que, às vezes a alma, contrariamente à inclinação da potência concupiscível, se ocupa de coisas penosas, afim de, em conformidade com a potência irascível, lutar contra as adversidades. Daí que as paixões irascíveis parecem se opor às paixões concupiscíveis. Assim, quando a concupiscência se acende, a cólera diminui, e reciprocamente, ao menos na maioria dos casos. Disso fica claro também que a potência irascível é uma espécie de combatente defensor da concupiscível, insurgindo-se contra aquilo que impede o que é conveniente que a concupiscível deseja, e contra aquilo que causa o dano do qual essa última foge. Por conseguinte, todas as paixões irascíveis têm origem nas paixões concupiscíveis, e nelas termina; a cólera, por exemplo, nasce de uma tristeza causada e uma vez dela liberada, termina na alegria. Pela mesma razão, os animais combatem pelo que desejam, a saber, o alimento e o sexo.

Respostas às objeções

1. A potência concupiscível tem por objeto o conveniente e o não conveniente. Mas a potência irascível se opõe ao não conveniente ao qual combate

2. Da mesma forma que nas faculdades cognoscitivas, na parte sensitiva, existe uma potência “estimativa” que percebe aquilo que não impressiona os sentidos, da mesma forma no apetite sensitivo existe uma potência que cujo objeto não é o que convém como deleitável ao sentido, mas como útil ao animal para sua defesa. E essa é a potência irascível.

3. 0 ódio pertence de si mesmo à potência concupiscível; mas em razão da luta que provoca, pode pertencer à irascível.”[24] Podemos reconhecer neste texto a tensão entre lust e unlust? À base da libido existem dois fatores: desprazer que se origina na tensão causada por um desejo insatisfeito e o prazer que produz a diminuição da tensão, ao se alcançar o objeto desejado. A partir desta tensão, a libido impulsiona em direção à satisfação do desejo e à superação dos obstáculos que a ele se interpõem.

“Artigo 3 A potência irascível e a concupiscível obedecem à razão?

Objeções. Parece que não.

1. A potência irascível e a concupiscível são partes da sensualidade. Ora, a sensualidade não obedece à razão; Por isso são simbolizadas pela serpente, como diz Agostinho. Logo, essas potências não obedecem à razão.

2. Quando se obedece a alguém, não se luta contra ele. Ora, a irascível e a concupiscível lutam contra a razão, como diz Paulo ao Romanos: “Eu vejo em meus membros outra lei que luta contra a do meu espírito”. Logo, essas potências não obedecem à razão.

3. Como a potência apetitiva é inferior à parte racional da alma, o mesmo acontece com a potência sensitiva. Ora, a parte sensitiva da alma não obedece à razão; com efeito, não ouvimos, nem vemos quando queremos. Logo, da mesma maneira não obedecem á razão as potências do apetite sensitivo, a saber, a irascível e a concupiscível.

Em sentido contrário, sustenta o Damasceno: ´o que obedece à razão e se deixa persuadir por ela se divide em concupiscência e cólera´.

Solução

 De duas maneiras a potência irascível e a concupiscível obedecem à parte superior da alma, na qual está o intelecto ou a razão e a vontade, a saber, uma, com respeito à razão e a outra, com respeito à vontade. Obedecem à razão quanto aos seus atos. Eis o motivo disso: o apetite sensitivo nos animais move-se naturalmente pela potência estimativa. Por exemplo, a ovelha, julgando o lobo como seu inimigo, o teme. No lugar da estimativa, há no homem, como já se explicou, a cogitativa, que alguns denominam razão particular, porque ela compara entre si as representações individuais. Por isso, o apetite sensitivo do homem é, por natureza, movido por ela. Mas a mesma razão particular recebe naturalmente seu movimento e sua direção da razão universal, e é por isso que, no raciocínio silogístico, se tiram de proposições universais conclusões particulares. Segue-se evidentemente que a razão universal comanda o apetite sensitivo que se divide em concupiscível e irascível, e que esse apetite lhe obedece. Mas a dedução que vai de princípios universais às conclusões particulares não é obra do intelecto como tal, mas da razão. Portanto essas duas potências sensitivas obedecem antes à razão que ao intelecto. Cada um pode fazer experiência disso em si mesmo: pode-se acalmar a cólera, o temor, etc., ou também excitá-los, com a ajuda de considerações de ordem universal.

O apetite sensitivo submete-se à vontade, quanto à execução, que se realiza por meio da potência motora. Nos animais, com efeito, o movimento segue-se imediatamente ao apetite concupiscível e irascível. Assim, por exemplo, a ovelha que tem medo foge do lobo imediatamente, pois não há neles apetite superior que se oponha a isso. Mas o homem não se move logo ao impulso irascível ou concupiscível, mas espera a ordem do apetite superior, a vontade. Quando, com efeito, potências motoras estão ordenadas uma à outra, a segunda não move senão em virtude da primeira; por isso, o apetite inferior não pode mover se o apetite superior não consente nisso. E o que quer dizer Aristóteles: “O apetite superior move o interior, como uma esfera celeste superior move a inferior. É dessa maneira, portanto, que o apetite irascível e o concupiscível obedecem à razão.

Respostas às objeções

1. A sensualidade é simbolizada pela serpente segundo o que lhe convém como próprio, enquanto parte sensitiva. Irascível e concupiscível designam antes o apetite sensitivo, enquanto ato, ao qual são levados pela razão, como acabamos de dizer.

2. Como diz o Filósofo em I Politcorum: “É preciso considerar no animal, diz Aristóteles, um poder despótico e um poder político: a alma domina o corpo por um poder despótico, o intelecto domina a afetividade por um poder político e régio. O poder despótico é aquele pelo qual alguém comanda os escravos, que não têm a capacidade de resistir à ordem do chefe, pois nada têm de próprio. O poder político e régio, por sua vez, é aquele pelo qual se comanda a homens livres que, embora submetidos à autoridade do chefe, têm entretanto algo próprio que lhes permite resistir às suas ordens. Da mesma forma se diz que a alma domina o corpo com um poder despótico, pois os membros do corpo não podem de nenhuma forma resistir às suas ordens, mas seguindo seu desejo, a mão, o pé, e todo e qualquer membro que pode receber naturalmente um impulso da vontade, se movem logo. Mas se diz que a intelecto, ou a razão, comanda ao irascível e ao concupiscível com um poder político, pois o apetite sensível tem algo próprio que lhe permite resistir à ordem da razão. O apetite sensitivo, de fato, pode ser movido naturalmente não somente pela estimativa nos animais e pela cogitativa no homem que a razão universal dirige, mas ainda pela imaginação e pelos sentidos. Sabemos, por experiência, que o irascível e o concupiscível se opõem à razão, quando sentimos ou imaginamos uma coisa agradável que a razão proíbe, ou uma coisa desagradável que a razão prescreve. Assim, o fato de que essas duas potências se oponham em certos casos à razão, não impede que elas lhe obedeçam”.

3. Os sentidos externos têm necessidade para agir de objetos sensíveis externos que os impressionem, e cuja presença não depende do poder da razão. Mas as potências internas, tanto apetitivas quanto cognoscitivas, não necessitam de objetos externos. Por isso, são submetidas ao comando da razão, que pode não só excitar ou acalmar as afeições do apetite, mas também formar “fantasmas” da imaginação.”[25]

É particularmente importante esta questão, pois aborda um tema central: a suposta possibilidade da razão (o ego em termos freudianos)[26] controlar os apetites concupiscível e irascível e portanto, em última análise a libido. Parece-me interessante a maneira como Tomás de Aquino diferencia o comportamento humano (pulsional regido pelo Triebe) daquele animal (meramente instintivo, regido pelo Instinkt). Cabe à razão particular cogitativa comparar entre si as representações individuais (collativa intentionum individualium). Contudo, Tomás acrescenta logo que as potências sensitivas (concupiscível e irascível) obedecem antes à razão que ao intelecto (razão e vontade para ele são partes do intelecto). Aqui parece-me temos uma dica para entender como, na visão aristotélica, o funcionamento do intelecto e seu desdobramento no processo racional e volitivo não são tão simples como poderia parecer à primeira vista. De fato a racionalidade, no plano da comparação das representações individuais, não coincide necessariamente com o domínio da sensualidade por parte do intelecto ativo. É na terceira resposta às objeções que isto se torna mais claro, quando Aristóteles diz que “o intelecto domina a afetividade por um poder político e régio” e não por um poder despótico. Neste texto Aristóteles admite a dificuldade que o intelecto tem em dominar a libido, “pois o apetite sensível tem algo próprio que lhe permite resistir à ordem da razão”. E continua Aristóteles: “O apetite sensitivo, de fato, pode ser movido naturalmente não somente pela estimativa nos animais e pela cogitativa no homem que a razão universal dirige, mas ainda pela imaginação e pelos sentidos”. Existe portanto uma outra dimensão que controla as moções pulsionais ligada à “imaginação”, e aqui podemos tranqüilamente inserir o inconsciente freudiano, e aos sentidos. A conclusão é óbvia: “Sabemos, por experiência, que o irascível e o concupiscível se opõem à razão, quando sentimos ou imaginamos uma coisa agradável que a razão proíbe, ou uma coisa desagradável que a razão prescreve”.

Freud esclarece este processo, tornando explícito o conflito entre dimensão consciente e inconsciente do psiquismo humano. A dimensão inconsciente é chamada de Id, para expressar o seu dinamismo pulsional “não racional”, e ego a dimensão na qual convergem o pré-consciente e o consciente. “O ego é aquela parte do Id que foi modificada pela influência direta do mundo externo”,[27] a ele cabe a função de mediar as influências do mundo externo para o inconsciente, “esforçando-se” por substituir o princípio de prazer que, no inconsciente reina soberano, pelo princípio da realidade. A tarefa contudo não é fácil, pois o reprimido acaba voltando a emergir pela porta dos fundos. Deste conflito nasce o sentimento de angústia que Freud atribui ao ego: “O ego é a sede real da ansiedade (angst). Ameaçado por perigos oriundos de três direções [o inconsciente, o mundo externo e o superego, n.d.a.], ele desenvolve o reflexo de fuga”.[28]

Esta é a condição penosa do ser humano, que a partir da trama dos conceitos freudianos Mezan sintetiza de forma clara, mostrando a conotação claramente filosófica da antropologia freudiana. O visão de Freud, ao questionar a centralidade da noção de consciência, apresenta um homem dividido “e esta cisão lhe é consubstancial, como se vê, desde o surgimento do conceito de inconsciente”.[29]

Conclusão

Anthony Elliot em sua introdução à Psicanálise afirma que a “estratégia da concatenação teórica ou da inter-referência é a maneira mais frutífera e produtiva de envolvimento com a doutrina psicanalítica”.[30] Foi neste sentido, embora numa direção diferente daquela que ele propõe, que realizamos este trabalho. O objetivo não foi tentar uma síntese inovadora, mas apenas mostrar a complexidade do psiquismo humano e apontar para algumas interpretações que foram dadas, no decorrer dos séculos. Se por um lado fica plenamente confirmada a genialidade da teoria freudiana e a sua validade para descrever o psiquismo humano, por outro lado percebe-se que ela não se opõe de forma tão drástica às teorias antropológicas de cunho filosófico e religioso que mais influenciaram o Ocidente cristão, como às vezes se pensa. Isto nos leva a compreender que as distorções nascem de simplificações indevidas, sem dúvida ligadas mais ao nosso desejo (em sentido psicanalítico) do que à realidade.

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[1] Revista Veja (03/02/1999), no 1583, p. 58.

[2] Existem várias obras abordando as bases filosóficas do pensamento cristão dos primeiros séculos, cito aqui apenas algumas: O. Perler, Patristiche Pihilosophie, Berna 1959,; M. SPANNEUT, Le Stoicisme des Pères de l´Eglise de Clément de Rome à Clément d’Alexandrie, Du Seuil, Paris, 1957; A.WOLFSON, The Philosophy of the Church Faters, Cambridge, 1956, C. N. COCHRANE, Cristianesimo e cultura clássica, Il Mulino Bologna, 1969; E. HOFFMANN, Platonismo e Filosofia Cristiana, Il Mulino, Bologna, 1967; W. JAEGER, Cristianesimo primitivo e paideia greca, La Nuova Italia, Firenze, 1966.

[3] S. FREUD, “Projeto para uma Psicologia Científica” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. I, Imago, Rio de Janeiro, 1996.

[4] Id., Ibid.., p. 347ss.

[5] Id., Ibid., p. 347ss

[6] “Este processo pode ser descrito de forma esquemática: a fonte pulsional envia a energia psíquica sob a forma de estímulos pulsionais cuja manifestação coincidirá com vivências afetivas (de prazer e desprazer) que se associam a determinadas imagens (a maioria de origem externa) produzidas naquela ocasião” (L. HANNS, A teoria pulsional na clínica de Freud, Imago, Rio de Janeiro, 1999, p.85). “No processo primário reina um estado que se caracteriza pela disposição imediata a sair da Unlust para a Lust. pela alucinação, onde se vive no limiar entre a alucinação e a realidade” (Id., Ibid., p. 88)

[7] “Nele, as pulsões passam a assumir formas mais estáveis no âmbito representacional. Este aparelho (…) acumula, distribui e encaminha as cargas pulsionais a partir de um estoque de associações disponíveis com as quais ele opera segundo regras gerais de raciocínio. Estas regras lhe permitem simular e antecipar a cada momento o melhor percurso” (Id,, Ibid., p. 91).

[8] S. FREUD, “O ego e o Id” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XIX, Imago, Rio de Janeiro, p. 30.

[9] S. FREUD,”O problema econômico do masoquismo” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XIX, Imago, Rio de Janeiro, 1996, p. 184.

[10] Id., Ibid., p. 185.

[11]Cf. S. FREUD, “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XII, Imago, Rio de Janeiro, 1996.

[12] S. FREUD,”O problema econômico do masoquismo” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XIX, Imago, Rio de Janeiro, 1996, pp. 177-178.

[13] Id., Ibid., p. 178.

[14] Em toda nossa análise seguiremos as considerações de G. REALE, Para uma nova interpretação de Platão, Edições Loyola, São Paulo, 1997.

[15] Lisis, 221 E1s.

[16] Lisis, 219 D5.

[17] G. REALE, OP. Cit., p. 347.

[18] Górgias, 507 D6 -508 A8.

[19] Banquete, 203 B2.

[20] G. REALE, Op. Cit., p. 371.

[21] Forma é o que caracteriza um ser na sua natureza e na sua ação.

[22] O termo sensualitas significa o “apetite” que se volta para as realidades sensíveis.. O termo sensualidade porém evoca para o homem moderno somente a noção de prazer vinculada aos sentidos, sobretudo táteis. Santo Tomás, sem excluir este significado, pretende se referir aqui à afetividade, como princípio das emoções, paixões e sentimentos (sensibilidade), dando-lhe portanto um sentido mais abrangente.

[23] TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Q 81, a 1.

[24] TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Q 81, a 2.

[25] TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Q 81, a 3.

[26] “O ego representa o que pode ser chamado de razão e senso comum, em contraste com o Id. que contém as paixões” (S. FREUD, “O ego e o Id” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XIX, Imago, Rio de Janeiro, p. 39).

[27] S. FREUD, “O ego e o Id” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XIX, Imago, Rio de Janeiro, p. 38.

[28] Id., Ibid., p. 69.

[29] R. MEZAN, Freud: a trama dos conceitos, Editora Perspectiva, São Paulo, 1998, p. 340.

[30] A. ELLIOT, Teoria psicanalítica, Introdução, Edições Loyola, São Paulo, 1996, p.224.

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