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Vida amorosa e sexualidade

Carmen e o amor histérico

No início da temporada lírica do Teatro S. Pedro da capital paulista, foi apresentada a Ópera de Bizet, Cármen, baseada na novela homônima de Prosper Mérimée. Ambientada na Espanha, narra a história de Don José, um soldado que é seduzido pelos encantos da cigana Carmen. Aos poucos ele é enfeitiçado pelo poder de sua beleza selvagem. Por sua causa acaba sendo preso, rebaixado de posto e finalmente resolve desertar. Como prova de amor, deixa a carreira militar para se juntar a um bando de marginais do qual Carmen faz parte.

O amor é um pássaro rebelde, que nada pode aprisionar — anuncia Carmen em sua música — em vão o chamamos, é ele quem acaba de nos rejeitar (…). O amor é filho de boémio, nunca conheceu leis, se você não me ama, eu te amo, mas se eu te amo, se eu te amo, tome cuidado, o pássaro que você achou ter surpreendido, bateu asas e voou” (tradução livre do francês).  Como era de se esperar, após ter exigido do amado a prova suprema de amor, fazendo com que abrisse mão de sua vida e do seu futuro, Carmen se volta sem hesitação para outro homem, Escamillo o famoso toureador, que também acaba sendo seduzido pelos seus encantos. Louco de ciúmes Don José, acaba definitivamente com a sua vida, matando Carmen em praça pública.

O amor da histérica não é eterno, uma vez que seduziu, ela abandona. A ela, como às vítimas dos seus encantos, é negada a fruição do amor e do prazer. Mesmo que as conseqüências não sejam tão destrutivas como na ópera de Bizet, o amor histérico é sempre marcado pelo sofrimento e pelo abandono.

Aos poderes destrutivos da sedutora cigana, Merimée contrapõe o amor fiel e dedicado de Micaela, a namorada de Don José que tenta em vão resgatá-lo da vida desregrada que ele leva com Carmen. O curioso é que, na Ópera como na vida real, raramente as Micaelas conseguem desfazer os feitiços das Carmens. O poder da neurose feminina desperta frequentemente nos homens uma paixão cega, que o amor dedicado e fiel das Micaelas não consegue despertar.

O mérito da novela de Merimée é mostrar algo que é absolutamente comum na vida real. A paixão é um pássaro rebelde, que não segue as leis da lógica e menos ainda o princípio de realidade.

Mas há algo ainda mais curioso nisso tudo: contrariamente ao que frequentemente se pensa, a paixão não apenas não responde ao princípio de realidade, ela sequer presta contas ao princípio do prazer. Como bem mostra toda a epopeia romântica narrada em romances, poemas, novelas, óperas, filmes e peças teatrais, o desfecho da paixão é quase sempre destrutivo.

Sei o quanto tudo isso é decepcionante, mas, de fato, se a paixão não se transforma em amor, está destinada à falência, pois ela recusa a realidade do outro. O vínculo que se estabelece com o apaixonamento não é com  alguém real e sim com uma fantasia interna, que os mecanismos psíquicos de projeção incorporam ao outro.

O que regula esse mecanismo que, na opinião de Freud, beira o surto psicótico, é um forte investimento em um objeto (no caso uma pessoa) idealizado, um verdadeiro ideal criado pelo Eu do amante. O investimento afetivo que é projetado no outro nesse caso é apenas um investimento narcísico, ou seja, o amante está na realidade amando algo que ele mesmo produziu e que pouco ou nada tem a ver com o outro que ele diz amar. Existe entre esse amor pelo objeto impossível (porque não existe) e a melancolia uma forte relação. Amar algo que não existe é como amar algo que não está disponível porque está distante ou porque morreu.

No caso da Carmen, entra em jogo outro fator neurótico, a histeria. O problema do amor da histérica é que ele nunca pode se concretizar. Na hora H é sempre atacado ou negado. A pesar de seus encantos e de suas artimanhas de sedução, a histérica, por assim dizer de forma simplificada, não suporta o prazer e acaba fazendo pagar caro ao parceiro as gotas de prazer que eventualmente lhe proporciona.{jcomments on}

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