Uma das experiências psíquicas mais dolorosas e a sensação interna de fragmentação, de estilhaçamento e de desintegração. Embora essa experiência possa se tornar patológica, caracterizando um estado psíquico borderline, depressão profunda e melancolia crônica, de certa forma é um estado permanente e, portanto, “normal” da dinâmica mental.
Desde o Projeto para uma psicologia científica, no qual Freud faz sua primeira tentativa (sucessivamente abortada) de descrever o funcionamento mental com base em uma interessante descrição dos fluxos neuronais (o pai da psicanálise era neurologista), até seus últimos escritos, assistimos a uma procura voltada a resolver o paradoxo de uma mente que aspira à unificação e que, ao mesmo tempo, está profundamente atravessada pela divisão interna entre instâncias conflitantes.
Em um primeiro momento ele identifica o conflito entre a consciência, o subconsciente e o inconsciente, movidos pelo onipotente princípio do prazer/desprazer (a força motora) e refreados pelo princípio de realidade. Sucessivamente chega a identificar três instâncias, também em conflito entre si: a Coisa (o Id), o Eu e o Supereu (Segunda tópica).
Aos poucos Freud chega a perceber, com surpresa, que a força que move a mente não é apenas o princípio do prazer, a fragmentação interna está posta no próprio movimento motor da psique, ele já não está apenas em busca de ligações eróticas com o mundo externo (instinto de vida), mas também em uma ,busca contrária que leva a um fechamento sobre o próprio mundo interno, à procura de um estado de inanição e esvaziamento (nirvana), de desligamento agressivo em relação ao mundo externo e ao próprio mundo interno.
A reação negativa que os próprios discípulos de Freud tiveram diante dessa nova teoria freudiana demonstra o quanto seja difícil para a mente humana suportar a cisão e a desintegração e o quanto sejamos tentados de criar de forma alucinatória uma unificação confortável que elimine os conflitos e as tensões. Na sua descrição do processo mental da formação do “pensar”, Bion descreve que não há processo de pensamento sem que possamos suportar inicialmente o que ele chama de “turbulência emocional”, causada pela ausência da possibilidade de pensar, causada pelo que ele denomina a experiência do negativo.
Trata-se de um movimento dialético que a própria filosofia tentou identificar sob diferentes ângulos. Uma das leituras mais intrigantes do movimento do ser foi feito por Hegel, que vê o avanço da vida através de estados sucessivos de afirmação (Tese) e negação (Antítese) na constante busca de novas sínteses, que, por sua vez, são negadas. Marx traduz essa dialética, numa dialética materialista, marcada pelos conflitos entre capital e trabalho, entre dominador e dominado.
Se formos ousar um pouco mais audaciosamente, poderíamos ver também a tentativa dos teólogos dos primeiros séculos do cristianismo representar o divino não como uma mônada fechada em si, mas como uma dinâmica misteriosa, que eles denominam dinâmica trinitária, na qual se mantém o Uno, sem eliminar o múltiplo. Hegel que estudou teologia certamente tinha em mente essa dinâmca ao elaborar sua metafisica.
Desde que nascemos estamos às voltas com estes conflitos. A mãe ama e odeia o seu bebê, o bebê ama e odeia o seu objeto de amor que ele quer sugar” ao máximo e, ao mesmo tempo, “devorar” para destruí-la. Nessa ambiguidade essencial o ser humano se constitui.
A constituição do ser humano passa por uma experiência única, na qual ele inicialmente se percebe como existente, aliás como o único existente (narcisismo primário), já que para ele o mundo externo é apenas uma expressão do seu mundo interno. O mundo gira em torno dele e ele treina uma manipulação onipotente do ambiente. Se for suficientemente bem-sucedido, ele forma a primeira experiência unificadora do Si-mesmo (Self), uma tentativa de superar sua fragmentação interna e fazer a experiência de ser Uno. Ele terá que defender com unhas e dentes essa experiência, nem sempre com sucesso, contra o perigo da fragmentação e da dissolução destrutiva.
Quando essa tentativa de unificação interna for ameaçada por elementos internos e externos, o Uno será buscado fora de si, delegando a um Uno imaginário a função de unificar o que é percebido como fragmentado. A esse Uno serão dados nomes diferentes e a entrega a Ele será incondicional, pois será visto como o último baluarte contra a desintegração. Nele serão depositados feixes de projeções fantasiosas e alucinadas. Ele será o Mito pessoal no qual se condensará uma sensação de segurança e de “eliminação” de todo conflito, do diferente, do demasiadamente outro.