(C) Gustavo Lerner Battagliese[1]
É de comum acordo entre grande parte dos leitores da obra de Donald Winnicott, a ideia de que sua teoria foca o papel que a mãe desempenha no desenvolvimento do sujeito, negligenciando questões a respeito da função do pai. Podemos perceber que o enfoque que o autor dá aos estágios primeiros do desenvolvimento que precederiam o complexo de Édipo acarreta diversas leituras, que divergem em relação ao papel do pai em sua teoria. Essas interpretações discorrem, em grande parte, sobre uma suposta não importância da figura paterna para Winnicott, um exemplo claro disto pode ser encontrado neste trecho de Adam Phillips:
Em sua obra teórica, como veremos, ele abandonaria a figura do pai e a substituiria por uma fascinação pela criança e suas mães. Não é o pai que interessa a Winnicott como figura de interposição entre a mãe e a criança com o intuito de separá-las, mas sim um espaço transicional do qual o pai simplesmente não faz parte e “que inicialmente tanto une quanto separa o bebê de sua mãe”. (Phillips, 2007 [1988], p. 54)[2]
Winnicott realmente parece ter um grande fascínio pelos bebês e suas mães, e isto fica claro, quando percebemos que este é um dos principais enfoques de sua obra. Apesar de dar grande importância aos períodos iniciais da vida, é no mínimo injusto dizer, que o autor deixa de lado os desdobramentos que o complexo de Édipo tem sobre o desenvolvimento e formação do Sujeito. O que acontece é que o autor descentraliza este complexo, dando igual importância aos momentos que o precedem, mas não o exclui de seu pensamento. Observamos uma série de escritos seus, que se referem diretamente, às triangulações que se apresentam no Édipo. As relações triangulares pressupõem a idéia de que há mais alguém para além do bebê e sua mãe, e este terceiro; tradicionalmente retratado como o pai[3], por manter uma relação intima com mãe, regulamentaria assim o relacionamento da criança com ela.
Em meu trabalho de conclusão de curso (Battagliese, 2011)[4], apresentei de maneira sistemática, os caminhos que Winnicott propõe para que a figura deste pai simbólico se constitua para a criança. Pretendo neste artigo apresentar as principais idéias abordadas no trabalho anterior.
Winnicott propõe uma teoria do amadurecimento baseada na relação de dependência/independência da criança com seu ambiente, e as formulações a respeito do que vai se constituindo paterno, entram no mesmo contexto. A partir destas ideias propus uma divisão da função paterna para Winnicott em o que denominei de dois tempos.
O primeiro tempo consiste nos estágios de dependência absoluta e relativa, momentos em que não há na criança a distinção da existência de um mundo autônomo externo a ela. Nesse contexto, não há, também, para ela o reconhecimento do outro, como pessoa total e autônoma fora de seu controle onipotente. De modo que a figura do pai ou de qualquer outra pessoa não suscita nada de muito especial na experiência da criança, por não ser reconhecida ainda como uma pessoa e sim como parte do ambiente.
Assim sendo, para se pensar no que é paterno nesse tempo, não podemos ter outra referência que não seja a ambiental: o pai é um Pai Ambiente. Dessa forma, a intervenção paterna concreta tem pouco sentido ou ressonância na criança, de modo que no estágio de dependência absoluta Winnicott propõe que a função paterna esteja relacionada com a manutenção e proteção da díade mãe/bebê. Quanto a isso o autor afirma:
Nesse ponto o pai pode ajudar. Pode ajudar a criar um espaço em que a mãe circule à vontade. Adequadamente protegida pelo seu homem, à mãe é poupado o trabalho de ter de ocupar-se das coisas externas que acontecem à sua volta, numa época em que ela tanto precisa concentrar-se, quando tanto anseia por preocupar-se com o interior do círculo formado pelos seus próprios braços e no centro do qual está o bebê. (Winnicott, 1957, p. 27) [5]
Em um segundo momento deste primeiro tempo, na dependência relativa, a atuação do pai toma forma de intervenção, mas ainda não direta em relação à criança. No início da separação da díade inicial (caracterizado entre outros aspectos, pelo desmame gradual), a função paterna é descrita em termos de propiciar a flexibilização do vínculo mãe/bebê; ela é uma função “vetor”, que chama a mãe para fora da preocupação materna primária. Isso ocorre de modo que o holding que o pai já vinha oferecendo à díade, começa agir no sentido de sustentar a separação entre mãe e bebê, de modo que o pai está lá como apoio para a mãe e seu filho no suporte das angustias inerentes à desvinculação gradual.
Podemos observar que nesses aspectos iniciais dos estágios de dependência absoluta e dependência relativa, a afirmação de Phillips, mencionada acima, apesar de ir no sentido de excluir a figura paterna, não é de todo errônea. Ao atuar como protetor da unidade mãe/bebê e, posteriormente, apoiar a mãe em seu movimento contrário à simbiose, o pai age como um espaço transicional entre a mãe e seu bebê, ação que tem tanto o sentido de unir, quanto o de separar os dois. A ideia de um espaço transicional que une e separa a mãe de seu filho é bem pertinente quando pensamos que a proteção da díade é que vai garantir uma separação posterior, tendo em vista a segurança que a criança pôde ter em seus cuidados primários. Do mesmo modo, a separação posterior, como foi dito, pode ser considerada como símbolo da união subjetiva da criança com seus genitores.
Posteriormente, no final do concern, a figura do pai torna-se importante enquanto pessoa total. Ela já vinha sendo construída desde a dependência relativa, mas é apenas durante o estágio que precede o complexo de Édipo que ela toma uma forma definitiva. Esse momento marca a passagem para o que propus denominar segundo tempo da função paterna, em que o pai enquanto pessoa viva e atuante é fundamental para o desenvolvimento da criança. É a partir desse ponto que observamos uma contribuição importante de Winnicott para as formulações do complexo de Édipo. O autor dá ênfase ao fato de que, se não há provisão ambiental concomitante com a intervenção paterna da lei, ela em nada afetará a criança, como o autor diz:
É incomparavelmente melhor um pai forte que pode ser respeitado e amado, do que apenas uma combinação de qualidades maternas, normas e regulamentos, permissões e proibições, coisas inúteis e intransigentes. (Winnicott, 1957, p. 128-129)[6]
No trecho acima notamos que Winnicott discorre brevemente a respeito de uma força que o pai deve ter, esta força se caracteriza pelas ações que este vai desenvolvendo em seu seio familiar. Retornando ao final do estágio de dependência relativa observamos o principio regente desta idéia, que fica claro no seguinte trecho:
O pai pode ou não ter sido um substituto materno, mas em alguma ocasião ele começa a ser sentido como se achando lá em um papel diferente, e é aqui que sugiro que o bebê tem probabilidade de fazer uso do pai como um diagrama para sua própria integração, quando apenas se torna às vezes uma unidade. (Winnicott, 2007 [1969] p. 188)[7]
A ideia do pai como referencia à própria integração da criança só é possível, se este se faz como referencia, e isso se dá por meio da participação efetiva deste pai na vida de seu filho. O mesmo vale para a entrada da criança no Complexo de Édipo, onde Winnicott, ao falar sobre “dizer não” enquanto metáfora à castração discorre:
Gradualmente, e com sorte, esse princípio do “não” passa a estar consubstanciado no próprio homem, o Papai, que será amado e poderá aplicar a ocasional palmada sem perder nada. Mas ele tem que merecer o direito a dar palmadas se pretender dá-las, e para adquirir esse direito deverá fazer coisas tais como ter uma presença assídua no lar e não estar ao lado das crianças contra a mãe. (Winnicott, 1960, p. 47-48) [8]
O pai para aplicar sua lei tem de então ter uma presença constante na família. Assim, com a entrada da criança no Édipo, percebemos que a lei paterna tem em si um valor de provisão e segurança para ela. O pai que aceita rivalizar com a criança durante o complexo de Édipo demonstra respeito por sua fantasia de potência, “duelando” com ela, por mais que saiba que, na realidade, há um abismo entre sua potência adulta e a potência real da criança. A ideia do pai como diagrama de integração toma um significado ainda mais importante quando Winnicott afirma:
O menino perde um pouco de sua capacidade potencial instintiva, negando desta forma uma parte do que ele vinha reivindicando. (…) E mais, até certo ponto o menino estabelece um pacto homossexual com o pai, de modo que sua própria potência não é mais apenas dele, e sim uma nova expressão da potência do pai, por meio da identificação internalizada e aceita. (…) Por identificação com o pai ou com a figura paterna, o menino obtém uma potência por procuração e uma potência adiada, mas própria, que poderá ser recuperada na puberdade. (Winnicott, 1988, p. 73)[9]
Este pacto homossexual entre o menino e seu pai, só é possível, pois, se há algo no pai que atrai o seu filho, algo que está para além de meras normas. Winnicott parece compreender que, para a criança, a potencia e introjeção da figura paterna não estão apenas ligadas à força com que esta exerce sua lei, mas também, com suas características mais vivas e criativas expressas na atuação constante no lar e na família. Eis que nos deparamos com a ideia de uma provisão ambiental paterna constante que se desenrola durante todo o processo de amadurecimento. Esta provisão se caracteriza, não apenas pelo suprimento das necessidades básicas da criança e da família, e sim também pela atuação viva e afetiva do genitor com o seu filho.
O ambiente, portanto, tem papel crucial nos dois tempos da função paterna, o que se explica pela ideia winnicottiana de que a criança só se torna uma pessoa total pela experiência introjetada de um ambiente suficientemente bom. Essa experiência boa internalizada, que para Winnicott é a raiz da moralidade, é o que possibilitará que a lei externa incida sobre a criança. Em outras palavras: o recalque proveniente da inserção da lei paterna na vida infantil, não acontece se já não há algo deste paterno já constituído para a criança.
[1] Psicólogo e Acompanhante Terapêutico. O presente artigo é baseado em seu trabalho (homônimo) de conclusão de curso da graduação em psicologia da PUC-SP. glbattagliese@uol.com.br
[2] PHILLIPS, Adam. Winnicott. São Paulo: Ed. Ideias & Letras, 2007
[3] Este pai não é necessariamente a figura biológica do pai, e sim a(s) pessoa(s) que exerça(m) este papel de terceiro.
[4] Battagliese, Gustavo L. Apontamentos sobre a função paterna na teoria de Donald W. Winnicott. Trabalho de conclusão de curso. São Paulo: PUC-SP, 2011.
[5] Winnicott, Donald W. O Bebê como Organização em Marcha. In: A Criança e o seu Mundo [1957]. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
[6] Winnicott, Donald W. E o Pai? In: A Criança e o seu Mundo [1957]. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
[7] ____ O Uso de um Objeto no Contexto de Moisés e o Monoteísmo [1969]. In: Winnicott, C.; Shepherd, R.; Davis, M. (Org.). Explorações Psicanalíticas: D. W. Winnicott. Porto Alegre: Artmed, 2007.
[8]____ Dizer “Não” [1960]. In: Conversando com os Pais. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
[9] Winnicott, Donald W. Natureza Humana [1988]. Rio de Janeiro: Imago, 1990.