A Psicanálise Cura?
Para definir o que a Psicanálise cura, é necessário realizar dois movimentos complementares. O primeiro, comparativo, irá distinguir a noção psicanalítica de saúde (mental, no caso) das suas congêneres no senso comum e na Psiquiatria. O segundo mostrará que, para compreender o que Freud designa como cura – o objetivo do tratamento analítico – é necessário entender como funciona a mente e como ela pode se desarranjar, produzindo os transtornos chamados neuroses, psicoses, perversões e doenças psicossomáticas. O passo seguinte é, portanto, apresentar ao leitor uma introdução à metapsicologia e à psicopatologia psicanalítica – de onde o “segundo” dos três livros. Isto é feito tanto para as idéias de Freud quanto para as dos outros três autores, pois o que cada um entende por cura irá obviamente depender de sua visão da gênese, do desenvolvimento e da estrutura do “aparelho psíquico”. Em outras palavras, o trabalho terapêutico será sempre guiado por uma concepção, explícita ou implícita, do que é a mente e de como ela opera – bem ou mal – concepção que determina o modo pelo qual o analista julga possível intervir neste funcionamento, con-formando portanto o estilo interpretativo e a postura geral em relação à clínica de cada uma dessas grandes tendências da Psicanálise.
Assim, vemos se organizar a rede de conceitos que serve de fundamento à prática de cada autor – a idéia de pulsão em Freud, a idéia das ansiedades fundamentais em Klein, o self em Winnicott, etc. De cada um destes eixos, partem por assim dizer elementos derivados, cuja conexão com o tronco central é evidenciada por nosso autor com clareza exemplar. Ao falar de Freud, por exemplo, Girola nos conduz do Trieb aos processos primário e secundário, às diferentes arquiteturas da mente a que chamamos tópicas, ao tema da repetição, e assim por diante. O mesmo vale para o estudo de Klein (a fantasia inconsciente, as angústias persecutória e depressiva e as respectivas “posições”, os mecanismos básicos de defesa), para o estudo de Winnicott (o self e as ameaças que o circundam, o papel facilitador ou não do ambiente, as idéias de espaço potencial e de objeto transicional) e para o breve porém muito esclarecedor estudo de Bion (da sua preocupação com a “turbulência emocional” aos conceitos de continente/contido, sua teoria sobre o pensar, seu método clínico tão original).
Mesmo esta rápida enumeração dos tópicos abordados no livro basta para dar uma idéia da sua utilidade para aqueles que se iniciam na Psicanálise, ou mesmo para quem que deseja fazer uma rápida revisão de algum ponto da teoria. O autor tem o mérito – raro, é bom que se diga – de saber onde parar na abertura das trilhas paralelas: longe de se sentir obrigado a voltar até Adão e Eva para situar a transferência ou a inveja, ele nos explica as noções de que precisamos para compreender aquelas outras, e retorna com segurança ao tema principal. O leitor agradece, pois poucas coisas o desnorteiam mais do que as digressões sem fim nascidas quer da incapacidade de síntese de quem escreve, quer (infelizmente) da vontade de impressionar a galeria com o que só se pode chamar de “erudição ornamental”.
Girola escapa com elegância destes obstáculos, o Cila e o Caribdes da escrita teórico-histórica em Psicanálise. Seu objetivo, enunciado com firmeza já àquela página 18, é “compreender o que a Psicanálise cura, e como cura”. Para isso, como disse, é levado a comparar as idéias de doença, saúde e cura provenientes do “senso comum” e da Psiquiatria às que têm curso em nosso campo. Aqui, a formação clássica deste autor – nascido e educado na Itália, bacharelado em Teologia pela Pontifícia Universidade Laterana de Roma e em Filosofia pela UNISAL – lhe sugere referências muito interessantes a certos elementos entranhados nas idéias correntes sobre doença e saúde, que têm sua origem na visão religiosa da moléstia como maldição divina, e como desordem moral. (Ao escrever isso, noto que minhas associações com Adão e Eva por um lado, com o estreito de Messinai e com o sorvete, invenção peninsular que ganhou rapidamente o mundo no século XIX, nada têm de casuais: são elos com o que acabo de dizer sobre as origens nacionais e intelectuais de Roberto Girola. Por isso falei, atrás, em metonímia).