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As conseqüências do abuso

Abuso
Recentemente, acompanhei pela TV o caso de uma menina de 9 anos que foi abusada por seu padrasto e engravidou. O que pode acontecer na cabeça de uma criança nessas situações e quais as conseqüências disso para a vida dela? Maria, São Paulo

As conseqüências do abuso

O adulto envolvido no abuso de uma criança é responsável por uma violência muito grande, com conseqüências destinadas a perdurar, marcando a vida da vítima e a maneira como ela irá encarar a sua sexualidade.

No caso em questão, temos a agravante de uma gravidez precoce que envolve o nascimento de duas novas vidas em condições totalmente desfavoráveis e adversas, colocando inclusive em risco a vida da mãe.

Em casos parecidos, à mercê das reações do meio que a rodeia, a criança se vê obrigada a “decidir” se vai fazer um aborto, se vai ficar com o bebê, ou se vai entrega-lo para adoção. O mais provável é que a decisão seja tomada por algum adulto, como ocorreu no caso em questão. Isto porém não impede que o peso esmagador da decisão recaia de alguma forma sobre a vítima do abuso.

A opção pelo aborto (como no caso em questão) ou pela adoção acarreta um sentimento mais ou menos consciente de culpa que se agrava pelos sentimentos ambíguos gerados pela situação do próprio abuso. De fato, a participação de uma criança em um ato sexual é totalmente enigmático para o seu estágio de desenvolvimento psíquico. Embora sinta repulsa, as estimulações físicas trazem prazer e dor ao mesmo tempo, gerando um profundo sentimento de culpa por se sentir cúmplice de um ato que sua psique ainda não pode processar adequadamente, mas que percebe como “errado e sujo”.

Desta maneira o sexo tende a ficar automaticamente ligado no plano inconsciente à sensação de ser algo errado e sujo, mesmo quando passará a acontecer no futuro em situações totalmente normais.

No caso em questão, surge uma agravante ainda maior. Uma condenação oficial, por parte da autoridade local eclesiástica. Embora a menina tenha sido inicialmente mantida ao escuro de sua gravidez, a mesma acabou se tornando pública pela repercussão que teve a atitude que tomou o arcebispo de Olinda e Recife ao excomungar a mãe e os médicos que realizaram o aborto.

Um princípio ético foi salvo, mas a vida de uma vítima inocente foi marcada pelo peso de uma condenação que, por vir de um bispo que representa a Igreja Católica, é revestida de um caráter irrevogável e transcendente no plano simbólico. Trata-se de uma punição divina. É muito difícil que a menina não acabe se sentindo de alguma forma responsável.

O fato do estuprador ser o padrasto, ou seja, que supostamente deveria cuidar dela, torna o trauma ainda maior. O homem que deveria protege-la e ampará-la é o agressor e o causador da tragédia. Trata-se claramente de um ataque frontal à possibilidade de “confiar” em relações futuras que envolvam vínculos afetivos.

Nestes casos, tudo fica ainda mais difícil quando a mãe se torna cúmplice do estuprador, escondendo o “crime” atrás do seu “silêncio”, deixando de tomar claramente posição em favor da vítima. No caso em questão, a mãe alegou não estar a par dos estupros que o padrasto realizava com as duas enteadas. Mesmo assim, o fato dela não “enxergar” o que estava ocorrendo, do ponto de vista psíquico, equivale, para a menina, a um não reconhecimento da situação.

Além de ser mais um ataque a possibilidade de confiar em alguém, esta situação é particularmente prejudicial para o psiquismo por introduzir uma sensação de “irrealidade” diante do ocorrido. Se ninguém vê e reconhece o fato é como se o fato, embora real e terrivelmente doloroso, não existisse para os outros. Uma pesada sensação de inconsistência é jogada sobre as sensações e percepções da vítima. É como se tudo o que ela sente e sofre deixasse de fazer sentido.

A condenação eclesial joga sobre essas sensações um peso ainda maior, pois a vítima tornou-se definitivamente a “ocasião” de um “crime”, o aborto. No plano emocional, de vítima se tornou “algoz”. Até “deus”, na voz do bispo, parece dizer a essa menina que tudo o que ela viveu e sofreu merece apenas execração. A mãe foi condenada pela Igreja, o padrasto foi preso pela justiça. Será que alguém vai se preocupar por ela para lhe dizer: “Você existe e merece ser olhada com amor”?

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