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A mulher: um mistério?

Muitos homens casados ou em um relacionamento estável acabam se queixando de que não entendem como funcionam as mulheres. O pior é que as mulheres, por sua vez, acabam admitindo que elas mesmas às vezes não se entendem. Ao que podemos atribuir essa dificuldade? Não pretendo aqui resolver esse mistério, mas quem sabe o artigo possa oferecer algumas pistas para homens e mulheres entender melhor os problemas que os afligem na relação amorosa e na compreensão de si mesmos e do par.

Duas premissas podem nos dar alguma luz. O próprio Freud, após esboçar sua teoria sobre a sexualidade feminina e atrair sobre si as críticas do movimento feminista, acabou admitindo sua dificuldade de penetrar os mistérios do desejo feminino.

Ao abordar um tema tão controverso (o que não deixa de ser uma tentativa de construção de um discurso), é importante levar em conta o alerta de Michel Foucault sobre a produção do discurso (cf. A ordem do discurso), que nos impede qualquer ingenuidade. Todo discurso é controlado, selecionado, organizado e redistribuído com base em critérios de exclusão e de poder. Para Foucault “as regiões onde a grade é mais cerrada, onde os buracos negros se multiplicam, são as regiões da sexualidade e da política” (que aqui entre nós agora se misturaram).

É evidente que todo discurso que tenta definir o que caracteriza o masculino e o feminino, acaba sendo um discurso que nos implica pessoalmente, socialmente, politicamente e… economicamente.

Não pretendo escrever este texto com a ilusão de que sou isento de transitar por esse lugar escorregadio, por ser homem, branco, heterossexual, crescido em um ambiente de tradição judaico-cristã, europeu que mora no Brasil, e por fim, psicanalista.

É em especial desse lugar de psicanalista que este texto surge, como escuta de um sofrimento que atravessa homens e mulheres e que repercute na sociedade como um todo, na política e no próprio mundo corporativo, bem no coração do sistema capitalista neoliberal.

Quero deixar que nessa escuta ecoem todas as vozes que me habitam, tentando deixá-las falar, embora elas me confundam e me “enlouqueçam”.

Depois de estudar por muitos anos o desenvolvimento psicológico do homem e da mulher, Freud chegou à conclusão que não seria possível estabelecer um paralelo entre a forma como se organizam, entre os 3 e 5 anos, a sexualidade masculina e a feminina.

As teorias freudianas a respeito da sexualidade parecem à primeira vista forçadas e estranhas, mas a experiência clínica comprova que não são tão bizarras como parece.

Para Freud, o desenvolvimento sexual diferenciado imprime ao psiquismo de ambos características diferentes e isso se deve em parte às diferenças anatômicas, como ele apontou, e, em parte, como apontam teorias mais recentes, à forma como as diferentes culturas simbolizam os elementos masculinos e femininos, como significantes de poder e de exclusão.

Do ponto de vista fisiológico, de acordo com a teoria freudiana, a mulher percebe desde criança que o seu órgão sexual é diferente daquele do menino, assim como o menino se percebe diferente da menina. Como o menino, a menina brinca com o seu pequeno pênis, o clitóris, mas também se depara com um estranhamento: a sua conformação física parece indicar que “aí” algo foi retirado. Esta percepção pode ser consciente ou inconsciente.

Naturalmente a maneira como é concebida a vagina na própria teoria freudiana ressente da forma como a vagina era percebida na sociedade vitoriana e na forma como ela ainda é percebida em quase todas as culturas, que acabam dando ênfase aos elementos masculinos como sinal de potência e aos femininos como sinal de falta.

Na realidade, a fenda vaginal esconde um paradoxo: embora seja concebida pela maioria das culturas como sinal de uma falta, ela esconde a extraordinária potencialidade do feminino, aquela de gerar um novo ser. Sei o quanto as disputas feministas tentaram retirar o foco desta característica biológica da mulher, que parece incomodar as tendências mais radicais do feminismo tanto quanto incomoda a cultura machista, mas não é possível negar a potencialidade que se esconde no corpo feminino, seja que a mulher opte por ser mãe ou não.

Isto me faz pensar que, desde muito cedo, a mulher se depara com um paradoxo: por um lado um sentimento de falta e de insuficiência (cujas raízes ela acaba simbolicamente associando ao seu corpo, como uma ressonância do lugar social que lhe é atribuído pela cultura machista dominante) e, por outro, com essa misteriosa potencialidade do seu corpo que aponta pelo fato inegável de que não tem ser humano que não tenha passado por uma vagina, pelo menos simbolicamente, mesmo que tenha nascido por cesariana.

Certas tendências do feminismo, parecem aliar-se ao machismo ao querer diminuir a ênfase ou até mesmo negar essa potencialidade biológica do feminino, claramente para evidenciar que não podemos reduzir a mulher à sua vagina, alegando que este é um desvio da sociedade machista. Embora seja difícil discordar dessa afirmação e de sua indignação, creio que há algo mais a ser levado em conta que faz parte da complexidade da mulher, independentemente do fato dela vir a ser mãe ou não.

O documentário da Netflix sobre o machismo americano “The mask you live in” (A máscara em que você vive) permite perguntar se o menino não passaria por algo parecido, embora de forma diferente. Desde o início, ao lidar com seu pênis ele precisa compará-lo com aquele dos outros meninos, sentindo-se convocado a ser um representante da potência fálica do macho, mesmo quando ele preferiria não ter que ocupar esse lugar, que também tem sua raiz no elemento anatômico e no elemento cultural.

Creio que haja nisso algo muito profundo que Lacan tentou penetrar ao falar sobre a peculiaridade do gozo feminino, comparando-o com a experiência mística, na qual o ser humano se depara com o desejo de se unir de forma mística (não representável) com o divino, ao mesmo tempo em que experimenta a radical limitação da condição humana e a radical transcendência do divino. Um gozo radical atravessado por uma falta radical: o gozo que renuncia à função fálica: o gozo do não pleno. O feminino seria definido por essa condição inefável, não simbolizável. Talvez a definição da psicanalista francesa Kristeva possa ajudar na compreensão desse aspecto inefável do feminino: “Por ‘mulher’ eu entendo aquilo que não pode ser representado, o não dito, aquilo que permanece acima e além da nomenclatura e das ideologias”.

Isso evidentemente incomoda a nossa onipotência narcísica originária, não importa se formos homens ou mulheres. A percepção do nosso limite e, ao mesmo tempo, do alcance assustador de nossa capacidade de criar nos deixam perplexos e desconcertados. Creio que, de alguma forma, os elementos típicos do feminino nos remetem a isso e talvez por isso o feminino seja atavicamente temido, surgindo desse medo a necessidade de controlá-lo e subjugá-lo.

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