Quando um casal descobre que seu filho ainda bebê está com câncer, inicia uma verdadeira guerra. É o que relata o filme francês “A guerra está declarada”, de Valérie Donzelli, com roteiro de Jérémie Elkaïm. Na vida real, Valérie e Jérémie, que também são os protagonistas do filme, foram de fato casados e viveram o drama que interpretam na tela: a doença grave do seu filho.
No filme, eles são Romeo e Juliette, dois jovens que se conhecem numa balada, vivem um intenso romance e logo se casam e têm um filho, que, ainda bebê, começa a apresentar sintomas preocupantes
O diagnóstico inicia uma trágica mudança de vida, que se alastra por anos, marcada por um cenário cada vez mais angustiante e sombrio composto por médicos, hospitais, tomografias, cirurgias, ressonâncias magnéticas e quimioterapias. Tudo isso acompanhado pelo esgotamento dos recursos financeiros e das forças físicas.
Sem se tornar uma narração melosa, a filmagem retrata uma relação amorosa profunda, que dá sustentação ao calvário que o casal acaba vivendo. Sem indulgências e adaptações convenientes da realidade (como às vezes acontece com películas baseados em fatos reais), o filme acompanha o lento deteriorar-se da relação do casal, que porém permanece firme ao seu compromisso de salvar o filho doente. Uma guerra é sempre uma guerra que faz suas vítimas, produz feridas profundas, mutilações e traumas. Não é por acaso que Valérie e Jéremie, no filme, trocaram seus nomes por Romeu e Julieta. Como no drama de Shakespeare seu amor foi atropelado pela tragédia.
Por que algo tão bonito e nobre, uma história de desprendimento e de doação, não fortalece a união do casal e, ao contrário, acaba corroendo-a, sem contudo destruí-la? Por que a tragédia pode unir, assim como pode separar inexoravelmente um casal, mesmo quando eles fazem de tudo para que isso não aconteça?
No exercício de minha profissão de psicanalista pude acompanhar pessoalmente casos parecidos com aquele do filme. O desfecho não foi diferente: em alguns casos a separação foi inevitável, apesar da permanência de um tipo de vínculo peculiar. Os eventos traumáticos têm efeitos devastadores sobre a psique humana. Não importa o esforço consciente de superação e de adaptação, algo afeta de maneira muito profunda o mundo emocional dos envolvidos, sem que eles consigam reverter seus sentimentos.
Quando uma relação fica vinculada àquilo que o inconsciente considera um “objeto estragado”, ou seja, uma experiência traumática, o vínculo afetivo fica atingido de forma às vezes irreversível. Nesses casos, os esforços para manter o vínculo testemunham o quanto na realidade a tragédia una os psiquismos envolvidos, embora nem sempre o faça de forma saudável. Às vezes o vínculo se traduz em um esforço para manter uma relação tensa, difícil, marcada por sentimentos de raiva, ressentimento e mágoa.
Sem que isso se torne explícito, o parceiro se torna o “representante” do trauma, que com sua simples presença o rememora, o torna atual e operante. Embora não haja nisso nada de “racional”, as reações são incontroláveis, pois, de uma forma ou de outra, acabam manifestando raiva e decepção. Obviamente o alvo real não é o parceiro, e sim a tragédia em si, mas o parceiro e “escolhido” pelo inconsciente como representante de algo que para o psiquismo é inexplicável e portanto quase irreal.