(C) Renato Mezan
Resenha do Psicanalista Renato Mezan, sobre o livro de Roberto Girola, A Psicanálise Cura? Uma Introdução à Teoria Psicanalítica, Aparecida, Idéias e Letras, 2004, 189 p., publicada na revista Percurso, ano XVII, no 33, 2004
Os leitores que eram crianças aí por volta de 1960 talvez se recordem do slogan “Três em Um”, que designava uma grande novidade da época: o sorvete napolitano de creme, morango e chocolate. Anos mais tarde, numa bem-humorada alusão a este mesmo bordão, Marilena Chauí intitulou “Três em Uma” um belo artigo a respeito do Candide de Voltaire[1].
Ao terminar a leitura do livro de Roberto Girola, estas duas lembranças se me impuseram de imediato. No início, não me dei conta de que eram associações; pareciam antes esses pensamentos um tanto fora de lugar que às vezes irrompem em nossa mente, para em seguida desaparecer tão misteriosamente quanto surgiram. Mas como as duas lembranças persistiam em se manter piscando na minha consciência, acabei por me perguntar pelo motivo; e, após alguns saltos “de pato para ganso”, a luz se fez – era um princípio de elaboração, sob a forma conjunta de uma metáfora e de uma metonímia, dando uma primeira forma à impressão ainda difusa produzida em mim pelo que acabara de ler.
Pronto, pensei: eis aí o fio condutor da resenha que tinha me comprometido a fazer para a Percurso. De fato, Roberto Girola nos brinda não com um, mas com três livros entrelaçados. O primeiro discute o conceito de cura em Psicanálise; o segundo realiza uma cuidadosa análise de diversos conceitos centrais para a teoria e para a clínica; o terceiro apresenta uma perspectiva sobre a história da nossa disciplina, percorrendo a linha vermelha que vai de Freud a Melanie Klein e desta aos seus dois principais discípulos, Winnicott e Bion.
Eis aqui os “três”, pensei. Continuando a metáfora, o “um” – aquilo que confere unidade à obra – é a questão da cura, pois Girola jamais perde de vista o seu objetivo principal, para o qual convergem tanto a discussão conceitual quanto o esboço histórico. E o conjunto, como nota com razão Tales Ab’Saber no prefácio que escreveu para o livro, constitui uma ótima introdução à Psicanálise, dirigida em especial a estudantes de Psicologia que se iniciam na matéria, mas também acessível a qualquer leitor que deseje obter um panorama geral do que fizeram Freud e alguns dos seus principais sucessores.
Girola começa lembrando que o desejo de curar está presente no âmago mesmo da empresa freudiana, como comprova por exemplo o sonho de Irma na Traumdeutung. De fato, a Psicanálise começa como um tratamento médico, visando a erradicar os sintomas dos e das pacientes que procuravam o Dr. Freud em seu consultório: eles também desejavam se curar, colocando-se assim o “desejo de cura” nos dois pólos da dupla analítica. Esta origem como ramo da Medicina irá marcar a Psicanálise, cujo trajeto, porém, se afastou progressivamente desta raiz para constituir-se como campo autônomo de conhecimento. De modo que cabe, hoje, retomar a questão: se a Psicanálise cura, o que ela cura, e como cura? (p. 18). É para responder a esta pergunta que nosso autor se dirige aos conceitos e à história.
Para definir o que a Psicanálise cura, é necessário realizar dois movimentos complementares. O primeiro, comparativo, irá distinguir a noção psicanalítica de saúde (mental, no caso) das suas congêneres no senso comum e na Psiquiatria. O segundo mostrará que, para compreender o que Freud designa como cura – o objetivo do tratamento analítico – é necessário entender como funciona a mente e como ela pode se desarranjar, produzindo os transtornos chamados neuroses, psicoses, perversões e doenças psicossomáticas. O passo seguinte é, portanto, apresentar ao leitor uma introdução à metapsicologia e à psicopatologia psicanalítica – de onde o “segundo” dos três livros. Isto é feito tanto para as idéias de Freud quanto para as dos outros três autores, pois o que cada um entende por cura irá obviamente depender de sua visão da gênese, do desenvolvimento e da estrutura do “aparelho psíquico”. Em outras palavras, o trabalho terapêutico será sempre guiado por uma concepção, explícita ou implícita, do que é a mente e de como ela opera – bem ou mal – concepção que determina o modo pelo qual o analista julga possível intervir neste funcionamento, con-formando portanto o estilo interpretativo e a postura geral em relação à clínica de cada uma dessas grandes tendências da Psicanálise.
Assim, vemos se organizar a rede de conceitos que serve de fundamento à prática de cada autor – a idéia de pulsão em Freud, a idéia das ansiedades fundamentais em Klein, o self em Winnicott, etc. De cada um destes eixos, partem por assim dizer elementos derivados, cuja conexão com o tronco central é evidenciada por nosso autor com clareza exemplar. Ao falar de Freud, por exemplo, Girola nos conduz do Trieb aos processos primário e secundário, às diferentes arquiteturas da mente a que chamamos tópicas, ao tema da repetição, e assim por diante. O mesmo vale para o estudo de Klein (a fantasia inconsciente, as angústias persecutória e depressiva e as respectivas “posições”, os mecanismos básicos de defesa), para o estudo de Winnicott (o self e as ameaças que o circundam, o papel facilitador ou não do ambiente, as idéias de espaço potencial e de objeto transicional) e para o breve porém muito esclarecedor estudo de Bion (da sua preocupação com a “turbulência emocional” aos conceitos de continente/contido, sua teoria sobre o pensar, seu método clínico tão original).
Mesmo esta rápida enumeração dos tópicos abordados no livro basta para dar uma idéia da sua utilidade para aqueles que se iniciam na Psicanálise, ou mesmo para quem que deseja fazer uma rápida revisão de algum ponto da teoria. O autor tem o mérito – raro, é bom que se diga – de saber onde parar na abertura das trilhas paralelas: longe de se sentir obrigado a voltar até Adão e Eva para situar a transferência ou a inveja, ele nos explica as noções de que precisamos para compreender aquelas outras, e retorna com segurança ao tema principal. O leitor agradece, pois poucas coisas o desnorteiam mais do que as digressões sem fim nascidas quer da incapacidade de síntese de quem escreve, quer (infelizmente) da vontade de impressionar a galeria com o que só se pode chamar de “erudição ornamental”.
Girola escapa com elegância destes obstáculos, o Cila e o Caribdes da escrita teórico-histórica em Psicanálise. Seu objetivo, enunciado com firmeza já àquela página 18, é “compreender o que a Psicanálise cura, e como cura”. Para isso, como disse, é levado a comparar as idéias de doença, saúde e cura provenientes do “senso comum” e da Psiquiatria às que têm curso em nosso campo. Aqui, a formação clássica deste autor – nascido e educado na Itália, bacharelado em Teologia pela Pontifícia Universidade Laterana de Roma e em Filosofia pela UNISAL – lhe sugere referências muito interessantes a certos elementos entranhados nas idéias correntes sobre doença e saúde, que têm sua origem na visão religiosa da moléstia como maldição divina, e como desordem moral. (Ao escrever isso, noto que minhas associações com Adão e Eva por um lado, com o estreito de Messina[2] e com o sorvete, invenção peninsular que ganhou rapidamente o mundo no século XIX, nada têm de casuais: são elos com o que acabo de dizer sobre as origens nacionais e intelectuais de Roberto Girola. Por isso falei, atrás, em metonímia).
Estas concepções religiosas infiltram, sem que percebamos, a visão racionalista da doença e da saúde como transtornos exclusivamente corporais veiculada pela Medicina, especialmente pela mediação da crença em milagres – hoje não mais os de Lourdes ou Fátima, mas a crença na possibilidade de remover cito, tuto et jucunde[3] o sofrimento mental pela via dos anti-depressivos, ansiolíticos et caterva. É o caminho dos diversos DSM e da propaganda dos laboratórios, que se serve de fatos científicos relevantes – como a descoberta dos neurotransmissores, ou a provável localização em certas áreas cerebrais da base física para determinados transtornos psíquicos – para extrair conclusões ideológicas que alimentam a ilusão contemporânea por excelência: a de que o sujeito não é mais agente e foco originador dos seus atos, portanto responsável por eles, mas na essência consumidor do que a indústria lhe apresenta. E quanto menos perguntas, melhor! Consome e goza, tal parece ser a paupérrima versão contemporânea do imperativo categórico.
Um outro aspecto importante deste pequeno grande livro é a relação de continuidade que estabelece entre Freud e seus sucessores. Ao mesmo tempo em que explica claramente no que são diferentes, Girola mantém firmemente em mãos os diversos fios que unem entre si as teorias que nos apresenta – de filiação, é claro, mas também de diálogo. Pois, se é necessário que para se constituírem em tendências no campo psicanalítico essas teorias sejam não coincidam completamente umas com as outras, para que constituam tendências no campo psicanalítico elas precisam ter algo em comum entre si, e diferente do “não-psicanalítico”. E, avançando na leitura, compreendemos no que consistem estes fatores comuns: as noções de inconsciente dinâmico e da necessidade de erigir defesas contra impulsos e angústias – o que situa no âmago de todas elas a idéia de um conflito psíquico inescapável -; uma visão no essencial compartilhada sobre o que é e como trabalha a mente humana; uma postura ética assentada sobre a neutralidade e a renúncia à pretensão de ser, como diz Freud no final do O Ego e o Id, o guru do paciente; a atenção às modalidades da transferência e o uso característico da interpretação que daí decorre. O breve estudo da noção de self em Jung (p. 131 ss), por contraste, nos mostra como fica diferente a paisagem quando atravessamos a ponte e saímos da Psicanálise.
Para concluir, uma menção à bibliografia de que se serve Girola. Ela vai agilmente dos clássicos ao atual, de Susan Isaacs a Laplanche e Pontalis, de Kohut a Nicole Zaltzman, de Santa Teresa de Lisieux a um artigo da revista Veja. O leitor é assim apresentado a alguns dos principais comentadores psicanalíticos, aprendendo com eles a ler os escritos fundamentais e a discernir toda a sua riqueza. Não é pouco, nestes dias de espessa ignorância em que o trabalho de entender é considerado inútil ou cansativo, porque seu ritmo não é do clipe de televisão, e sim o da paciente travessia de argumentos por vezes complexos.
“Três em um”: vem-me à mente a canção infantil Teresinha de Jesus (ah, penso, Teologia, Santa Teresa, Universidade Laterana… como o processo primário interfere na atividade “secundarizada” de escrever uma resenha!). Teresinha foi ao chão; acudiram três cavaleiros, e o terceiro “foi aquele a quem ela deu a mão”. Nós, leitores, somos como Teresinha, e Girola nos oferece a mão – uma mão amiga, que nos conduz com amabilidade neste passeio ao território sempre interessante da Psicanálise.
Decididamente, três em um!
NOTAS
[1] M. Chauí, Três em uma: as viagens de Cândido, in Do mundo sem mistérios ao mistério do mundo, São Paulo, Brasiliense, 1981.
[2] Cila e Caribdes são dois obstáculos que tornam perigosa a navegação entre a ponta da bota italiana e a Sicília. Uma lenda grega dizia tratarem-se de dois monstros; Cila, o monstro feminino, foi transformada em pedra, e Caribdes, o masculino, num redemoinho. Na Arte Poética, Horácio emprega seus nomes para designar os riscos opostos a que se sujeita um autor, por exemplo o excesso ou a carência de alguma coisa em sua obra; “evitar Cila para cair em Caribdes” veio a significar assim safar-se aqui para tropeçar acolá. Já quem “navega entre Cila e Caribdes” tem sucesso em vencer os riscos da empresa a que se propôs.
[3] “Rápido, completo, com alegria” – era o lema do bom médico, uma injunção a curar o quanto antes e o mais radicalmente possível, com o mínimo de incômodo para o paciente.
A resenha foi publicada na revista Percurso, ano XVII, no 33, 2004
Renato Mezan é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professor titular da PUC/SP e autor de diversos livros, entre os quais Freud, Pensador da Cultura (nova edição de 2004, pela Companhia das Letras) e A Sombra de Don Juan e Outros Ensaios (nova edição pela Casa do Psicólogo, 2004).