Não há dúvidas de que a função paterna está em crise. Vários autores abordaram esse fenômeno sob diferentes perspectivas, desde o mundo líquido de Bauman, até o gozar a qualquer preço de Melman, e, de forma indireta o fenômeno aparece nos pressupostos do pensamento fraco dos filósofos italianos Vattimo (discípulo de Gadamer) e Rovatti, na esteira do pensamento pós-moderno. Trata-se na realidade de um fenômeno observável não apenas no âmbito da dinâmica familiar, mas também na sociedade como um todo, se atrelarmos à essa função os conceitos de lei, de autoridade. de racionalidade e de poder.
Por estar tradicionalmente ligada à figura masculina, a função paterna também depende da forma como os elementos masculinos e femininos são percebidos e vivenciados, servindo de base para as identificações, a definição dos papeis e a definição das questões de gênero.
Aqui pretendo examinar a função paterna no âmbito do desenvolvimento primitivo do bebê e da criança, mesmo sabendo que esse cenário está longe de ser homogêneo, já que à visão tradicional da família se contrapõem as “produções independentes”, a situação das mães solteiras, dos casais separados e dos casais homossexuais. Para cada caso seria necessário refletir como a situação padrão é reproduzida envolvendo figuras substitutas, sobrepostas, duplicadas e “trocadas, numa trama complexa de significantes.
Freud refletiu sobre essa questão ao propor o complexo de Édipo (entre os 3 e 5 anos) como um momento fundamental para a organização da sexualidade masculina e feminina e para a estruturação do Superego, uma instância psíquica que ajuda a organizar o mundo interno da criança em sua relação com a noção de lei e com as limitações impostas pelo mundo externo e pelas demandas da realidade.
Um primeiro desafio se apresentou para o próprio Freud quando compreendeu que não poderia tratar esse momento da mesma forma para o menino e para a menina. Se para o menino a função paterna representa uma “ameaça” de castração, e um barramento do seu desejo de conquistar a mãe só para si, para a menina, o pai se apresenta como uma “alternativa” à castração, a partir do momento em que ela pode se apropriar da sua potência, mediante a sedução, competindo com a mãe. Para Freud isso levaria a maneiras diferentes de como se estrutura o Superego nos homens e nas mulheres.
Por se tratar de uma estruturação baseada em relacionamentos, este momento do desenvolvimento humano é fluido e depende da forma como a dinâmica familiar se organiza no triângulo edípico (pai, mãe, filho/filha) e na representação simbólica que cada elemento desse triângulo ganha na própria dinâmica familiar.
É fácil compreender que, neste sentido, a visão freudiana ganha novas configurações simbólicas nos nossos dias. Pai e mãe frequentemente dividem a tarefa de sustentar a família. A figura feminina ganhou novas configurações ao se colocar no mercado de trabalho e em posições sociais que competem com o universo masculino, cada vez mais fragilizado pelo desemprego e pela competição.
Do ponto de vista sexual e afetivo, a mulher também ganhou nova “potência” ao poder competir com os homens de par a par na possibilidade de ter parceiros sexuais facilmente acessíveis nas redes sociais e no trabalho.
Isso gera nos homens confusão e desorientação sobre seus papeis, provocando depressão, desistência, ou então tentativas de afirmação maníaca que pode até desembocar na violência moral ou física. Nas mulheres é possível perceber inconsistências emocionais na busca de uma igualdade improvável, não apenas por questões culturais, mas também por questões bio-psíquicas, e no desejo oposto de que no fundo o homem continue sendo o macho de sempre, detentor do falo.
No caso dos casais separados, o triângulo edípico se transforma em um pentágono que oferece novas combinações simbólicas e uma estruturação afetiva complexa. A configuração é ainda mais complexa se a criança for adotada por um casal homossexual.
Na perspectiva das pesquisas psicanalíticas pós-freudianas sobre o desenvolvimento do psiquismo infantil, vários autores — iniciando por Ferenczi e passando pelas importantes contribuições de Klein, Balint e Winnicott — começaram a prestar atenção aos primórdios do desenvolvimento infantil, que se revelou extremamente importante e decisivo para a constituição do psiquismo, bem antes que a criança entre no complexo de Édipo.
A descoberta da função fundamental da mãe ambiente ressaltou a importância da função materna para a constituição básica do psiquismo, mas acabou por não dar suficiente ênfase à função paterna no contexto dos cuidados primitivos do bebê.
Na realidade, Winnicott não desconsiderou a importância da presença paterna (cf. A função paterna em Winnicott), mas sem dúvida a ênfase ficou nos cuidados da mãe suficientemente boa, suscitando por sinal as críticas da vertente feminista da Psicanálise.
Mesmo levando em conta as importantes contribuições desses autores sobre a função materna, a questão do ambiente primitivo que acolhe o bebê só fica equilibrada com o reconhecimento da importância da função paterna.
Desde a gravidez, o pai é chamado a exercer uma função equilibradora importante, que visa compensar as inúmeras descompensações que a mulher vivencia nas transformações físicas e hormonais do seu corpo e na complexa elaboração psíquica do “outro” que passa a habitar seu corpo, tornando-se em certos casos um verdadeiro “alien”, em contraste com a visão romântica que a sociedade lança sobre a gravidez.
Neste primeiro momento e depois do parto, nos primeiros seis meses, a função paterna é fundamental para garantir um ambiente facilitador, onde a mulher e o seu bebê possam se sentir protegidos e amparados, sem grandes perturbações. A função paterna, nesse sentido, não é apenas de “suporte”, uma espécie de prolongamento da função materna, mas exige a criação de um “ambiente” de contenção psíquica para a mãe e o seu bebê, que eu gosto de chamar de bolha.
Quando se aproxima o desmame (geralmente parcial), cabe ao homem exercer outra função importantíssima para a mãe e para o bebê. Ele deve contribuir a romper a bolha fusional que se criou entre a mãe e o bebê.
Geralmente é muito difícil para as mães, sobretudo para as mães de hoje, que, ainda ligadas aos seus bebês, devem se distanciar e romper com a fase fusional primitiva para voltar a cuidar de sua vida profissional, deixando-os aos cuidados de uma escolinha ou de uma substituta (babá, avó, etc.).
Esta dificuldade é muito dolorosa e patológica tanto para a mãe, como para o seu bebê. Percebe-se às vezes, nos sonhos de crianças entre dois e quatro anos o aparecimento de pesadelos em que elas são perseguidas ou devoradas por algum monstro ou animal selvagem, um representante psíquico da mãe devoradora, pois é assim que a mãe fusionada é percebida pela criança.
Cabe ao pai romper o fusionamento, estabelecendo um convívio com o(a) filho(a). Neste convívio ele vai imprimir o modo “masculino” de cuidado, que faz com que a criança se sinta “lançada no mundo”, na experimentação de certa autonomia, em contraposição à dependência imposta pela mãe.
Mais pela frente o mesmo pai será também aquele que irá impor com mais clareza as regras e os limites do convívio (noção de Lei), que poderão ser aceitas pela criança pelo vínculo afetivo que ela estabeleceu com ele desde muito cedo.
A associação do limite com a experiência do afeto torna possível para o psiquismo um relacionamento muito mais leve com os limites e as frustrações que a Realidade impõe. Em contrapartida a ausência da função paterna joga a criança em um mundo angustiante, com o qual ela se relacionará de forma agressiva, transgressora, angustiada e ansiosa, preparando o adulto que, mais tarde, não saberá lidar com os desafios que a vida social apresenta, com tendência a atuações maníacas, violência, manipulação onipotente perversa, ou então, depressão e até bipolaridade.